sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Os Direitos Humanos e a sociedade.

Diante da onda de violência que vem assolando nossa sociedade alguns comunicadores, agentes de segurança e outros participantes do jogo social vem questionando a noção de Direitos Humanos, alegando que esta noção seria responsável, em parte, pela impunidade de criminosos. Realmente, é lamentável que ainda hoje se confunda a atividade policial com atividade punitiva e que os Dirietos Humanos sejam traduzidos segundo mentalidades que se recusam a sair da idade média quando as leis eram impostas por uma dada classe a todos os outros indivíduos. Seria interessante que os nossos agentes, juristas e demais atores dos processos legais ponderassem sobre a diferênça entre crime e pecado, pois enquanto o segundo é a transgressão a uma norma que fere a "essência" dos seres humanos, o primeiro é a transgressão a normas estabelecidas pelo consenso social, e portanto de forma alguma tal transgressão autoriza a considerar o transgressor algum tipo de "besta fera" sem direitos. Feliz ou infelizmente, a história nos ensinou muito sobre o risco de confiar a vida e o bem estar dos indivíduos ao julgamento de uma dada classe, mesmo quando esses indivíduos seriam supostamente transgressores. Por uma lado qualquer pessoa com um mínimo estudo de dados estatísticos sabe que a sociedade não está isenta de responsabilidade pela produção do delito, e por outro lado, a garantia de certas prerrogativas inalienáveis a esses "transgressores" é o que impede: que retornemos a barbárie das fogueiras inquisotoriais, a criação de uma classe super poderosa de policiais - juízes- executores e principalmente que sancionemos injustiças ireeversíveis com o argumento de que estamos defendendo a lei. Todos reconhecemos o carácter delicado e imprescendível do trabalho policial, as dificuldades que estes agentes enfrentam e o progressivo aumento da criminalidade que nos deixa a todos atônitos. Mas, justamente pela consciência destes perigos é que precisamos ficar atentos, pois é em epócas de crise que surgem os super-heróis como Benito Mussolini, Adolf Hitler, Mao Tsé Tung, Stalin e outros que se oferecem para resolver todas as crises através do aumento do poder de alguns e da restrição dos direitos de todos.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Direitos Humanos, cultura e educação.

Refletir sobre os direitos humanos é refletir sobre nossa cultura, e não apenas sobre nossas leis. A cultura determina o leque de possiveis valorações que serão apresentadas a cada indivíduo no curso de seu desenvolvimento, a lei apenas sanciona ou condena alguns comportamentos advindos destas valorações. Contudo, ao defendermos nossas convicções acerca da necessidade de eliminar da nossa cultura os seus elementos anti-liberais e excludentes, as descrições e vocabuláios éticos que orientam atitudes sexistas ou racistas, raramente percebemos que estamos defendendo a mudança de nossa cultura em uma dada direção. Essa direção, por sua vez, é determinada por processos históricos específicos que nos levam a um choque com toda expressão cultural que não identifica nesses mesmos processos parte da sua identidade. Como exemplo de uma dessas expressões culturais citarei algumas denominações religiosas que condenam a homossexualidade, em alguns casos tratado-a como uma espécie de patologia, uma “doença da alma”. Por outro lado, nós que assimilamos o vocabulário do iluminismo, a consciência histórica e política que desenvolveu-se a partir do século XIX nas sociedades ocidentais, consideramos a homossexualidade como tão digna e nobre quanto qualquer outra expressão sexual humana. Como resolver esse impasse? É claro que do ponto de vista legal esse impasse não existe. As prerrogativas constitucionais asseguram aos indivíduos a liberdade de orientação sexual. Todavia, em nossos costumes permanece a inclinação a homofobia e outras formas de preconceito. O diálogo entre as duas opções éticas (porque entendo que toda opção valorativa é uma opção ética) não é simples. No caso de educadores cuja atividade implica a necessidade de levar os valores iluministas para indivíduos entrincheirados em convicções homofóbicas ou machistas essa dificuldade constitui, no meu entender, o ponto crucial da pedagogia em seu caráter ético - politico. Não é possível ignorar esse impasse, nem fingir que ele não existe. Para o educador, assumir dogmaticamente o ponto de vista iluminista e tentar simplesmente “inculcá-lo” no aluno seria inviabilizar o diálogo, e simular um processo educativo que não haverá. Por outro lado, desconsiderar as demandas de nossa sociedade por uma cultura inclusiva e livre do preconceito seria deixar de fazer aquilo que a sociedade civil dele espera, exilando-se no confortável espaço da indiferença. A terceira opção seria aquela que assume os valores igualitários de sociedades como a nossa com determinação e vontade, sem no entanto perder a capacidade de ouvir, ponderar e responder aos discentes portadores de discursos radicados em pontos de vista menos sensíveis a dor e ao sofrimento que causa o preconceito.

sábado, 3 de outubro de 2009

A noção de liberdade na filosofia contemporânea: convergências entre Isaiah Berlin e Richard Rorty.

Comunicação Proferida no IV encontro de pesquisa estudantil da UFBA
Se quiséssemos esboçar um possível retrato da filosofia contemporânea poderíamos começar citando como uma de suas características a relevância que esta atribui às palavras e a sua relação com nossas ações e valores. Entre as noções consideradas importantes em um debate sobre ética, por exemplo, a noção de liberdade parece possuir, ao menos do ponto de vista histórico, fundamental relevância. Situando-se no interior do debate filosófico de orientação política, e opondo-se as perspectivas com tais pretensões, a obra dos autores que a presente comunicação pretende abordar, Richard Rorty e Isaiah Berlin, traz em seu escopo interessantes repercussões para a compreensão da noção de liberdade na filosofia contemporânea. Como fio argumentativo central tomarei o acompanhamento de alguns trechos do artigo intitulado “Dois conceitos de liberdade” do filósofo Isaiah Berlin. Neste artigo Berlin desenvolve uma detalhada investigação acerca das diferentes noções de liberdade e das possíveis implicações advindas destas mesmas noções sob o ponto de vista político. Irei ler a narrativa oferecida por Berlin acerca do que ele denomina liberdade negativa e liberdade positiva a luz da defesa rortyna da contingência de uma comunidade liberal, a idéia, entre outras coisas, de que nossa sociedade não carece fundamentos filosóficos ou religiosos.
Baixe o texto integral aqui:

A Vida com o Acordo e Construção do Si -Próprio. Max Stirner e Richard Rorty..

Artigo publicado na revista IDEAÇÃO n-14 . Revita da UEFS

O presente artigo propõe-se a realizar a lateralização de algumas elaborações filosóficas de dois autores cuja posição na história da filosofia é bem diversa. O Primeiro deles é o jovem hegeliano Johann Kaspar Schimdt, mais conhecido pelo pseudônimo Max Stirner (1806-1856). Um tanto marginalizado pela tradição filosófica, Stirner foi autor do livro O Único e sua propriedade que publicado em 1849 despertou a ira de Karl Marx ao criticar os aspectos possivelmente “religiosos” de seu socialismo. O segundo autor é o filósofo norte americano Richard Rorty (1931-
2007) pragmatista, autor de livros como A Filosofia e o Espelho da Natureza, Ironia, Contingência e Solidariedade, Philosophy and Social Hope. A importância de Rorty para o pensamento contemporâneo foi reconhecida por filósofos da estatura de Habermas, por exemplo, tornando-se ele responsável por uma produção filosófica cujo (de) caráter eminentemente político defendia pela via pragmática a democracia e a separação entre vida publica e vida privada. O propósito deste artigo ao tentar encontrar as linhas de convergência entre os dois autores é oferecer algumas possíveis leituras de temas caros à filosofia contemporânea através do acesso às idéias de dois autores implicados na construção e interpretação dessa mesma contemporaneidade. Esperamos também explicitar um possível Proto-pragmatismo inserido na filosofia Stineriana, bem como o que diferencia essa característica do Neo-pragmatismo de Richard Rorty.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Esboço de uma superação do Dualismo em Platão



O presente trabalho pretende conduzir a uma reflexão a cerca da possibilidade de uma leitura não dualista da obra de Platão. Tal proposta extrai a sua relevância do estigma projetado sobre a obra do filósofo pelo advento da tradição metafísica ocidental. Obviamente não é possível negar a presença na obra do autor de elementos que podem conduzir a visualização de um dualismo quase maniqueísta, mas é nocivo crer que tal dualismo seja uma característica necessária ou mesmo preponderante no pensamento platônico. Para tentar fornecer o que seria o esboço de uma interpretação que tenta superar tal tendência fornecendo uma leitura na qual o dualismo da obra platônica figura apenas como elemento retórico, tomarei o discurso de diotima no diálogo “O Banquete” como um exemplo de argumentação que aponta para uma concepção que supera o dualismo.
A filosofia de Platão constitui em si mesmo uma admirável caleidoscópio de teses que vão em múltiplos sentidos nem por isso pode-se afirmar que sua filosofia constitui um caos desordenado de teses contraditórias Um liame intencional perpassa toda a sua obra conferindo-lhe unidade. Desde a estrutura do dialogo aberto, onde os participantes expõem seus pontos de vista unidos por um laço fraterno até a contemplação privada do belo e do bem, é o Eros que possibilita os mais relevantes aspectos de sua filosofia. Superando as preocupações pré-socráticas com a origem do mundo fenomênico, Platão busca o lugar da alma humana na ordem geral do cosmos. No Banquete, coincidência ou não um dos mais belos diálogos de Platão o amor é tematizado por diversos interlocutores figurando na maioria deles como a divindade primordial situada na própria origem do cosmos. Contudo é no discurso de Diotima que Eros afigura-se não só como uma força motriz da geração e corrupção, mas principalmente como o Daimon responsável pela união das diversas esferas.
Nesta rica exposição na qual assistimos Sócrates aprender de uma estrangeira da Mantineia os segredos do amor, encontramos uma imagem deste muito diferente da oferecida pelos outros interlocutores: “um grande daimon, Sócrates (...) situa-se entre o mortal e o imortal.”(Platão,o banquete pág. 74) Entre esses dois extremos, liga-os preenchendo o espaço entre eles mantendo o todo coeso e facultando a relação entre as diversas esferas do real. O amor permite a união de um diferente ao outro, não como uma relação física entre dois corpos que permanecem separados conquanto se toquem mas antes fazendo-os participar um do outro. E realizando respectivamente seus desejos no seio da totalidade.
No aspecto do conhecimento existe uma compreensão proporcionada pelo Eros, não a da ordem do discurso, mas sim uma pré-compreensão de ordem afetiva que faz o amante participar em parte daquilo que almeja conhecer e comungar por inteiro. O dualismo na obra de Platão tornado tão relevante para a metafísica ocidental parece perder sua força na medida em que esboça-se o papel do Eros na compreensão da relação entre as diversas instâncias do real. A função desse grande espírito pode ser melhor compreendida através do mito fornecido por Diotima. No dia do banquete em homenagem ao nascimento de Afrodite filho de Penúria e de Engenho ele assim teria nascido: “Um eterno mendigo (...) aturado poeirento, descalço dormindo ao relento na poeira dos caminhos” (Platão, O Banquete pág.75).
E ao mesmo tempo:
“Vive espreitando o que é belo e bom por que é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso passando a vida a filosofar, um mago extraordinário, um verdadeiro sofista.”(Platão,o banquete. pag75

Em perpetua metamorfose e oscilação entre a geração e a corrupção, disposto a tudo arriscar pelo alvo de seus desejos, carente do néctar insubstituível que é o bom e o belo, sempre a meio caminho da realização de qualquer uma de suas possibilidades a figuração desse espírito é o retrato da condição humana.
Esse mesmo estado de carência do amor é também a causa do percurso em direção ao infinito, no qual todos os objetos de momentânea satisfação precisam ser superados, o que ocasiona um constante ultrapassamento de si mesmo uma vez que da natureza do objeto amado depreende-se a natureza do indivíduo amante. O risco sempre presente durante essa grande jornada é deter-se a uma das metas situadas a meio caminho entre o finito e o infinito e tal qual os marinheiros de Odisseu dormir ao provar do loto dos prazeres sensíveis esquecendo-se da natureza de sua jornada, condenando a tão sonhada comunhão com o bem dos bens, a sua “Ítaca” eterna.Aqui compreende-se que essa mesma jornada é o fluxo composto de inspiração e expiração reter o fluxo é cortar o liame com a vida , o desejo acometido da cegueira que não se submete as injuções da razão,torna-se incontinente e apegado,deixando-se arrastar até tornar-se um escravo de um tipo inferior de satisfação, condenando a sua realização . Nessa medida o mundo sensível é uma instância primária, um degrau, para o mundo inteligível das formas e o amor pelos corpos e pelos objetos o primeiro passo na demanda para o amor as formas puras que conferem beleza a tais corpos. Ao contrário do que se costuma afirmar vemos aqui o mundo da geração e da corrupção não como mera negatividade mais sim como ponto de partida para um bem maior.
A realidade em sua totalidade constitui-se de uma tensão uma mobilidade entre ser e não ser atingir e ultrapassar deter-se em qualquer dos dois pólos desse movimento eterno é ignorar a natureza da totalidade mutilando-a. O papel do diálogo insere-se nessa perspectiva e muito mais do que estabelecer teses ou certezas consumadas como alguns afirmam ser a tarefa da filosofia, pretende ser uma iniciação, um trabalho sobre si para forjar-se como um amante do conhecimento mesmo sem tê-lo ainda possuído, ou melhor, justamente por isso. Afirma José Américo Mota Peçanha: “Logos e Eros são inseparáveis” O discurso sempre ultrapassa teses particulares quando os interlocutores motivados pelo amor a verdade estão sempre dispostos a colocar sob dúvida os seus pontos de vista, a dualidade aparente entre uma tese e outra é superada pelo Eros que motiva o dialogo e nele se encarna, a dualidade aparente entre sensível e inteligível é superada pelo amor que abarca o real em sua multiplicidade conferindo-lhe sentido.
Subir, elevar-se, superar-se não seriam então meros anseios acidentais advindos de algum capricho cego e instintivo mais antes a volição mais fundamental da alma. A aspiração por aquilo cujo pressentimento anuncia uma pré-compreensão ou uma memória esvaecida que deseja vir a tona tornando-se clara visão. Tal memória assemelha-se a gestação de uma estrela inquieta que é o fruto sonhado de nós mesmos, isso também caracteriza o Phatos do amor em Platão. A busca do belo como ocasião para geração de si mesmo, ou seja, a participação na imortalidade divina, auto-transcendência aqui não se constitui como uma violência reativa sobre si mesmo, mas sim como a busca de satisfação, da mais alta aspiração humana, o único gesto que pode realizar cada aspecto humano de acordo com sua justa reivindicação.
A ânsia pela imortalidade perpassa todos os níveis da realidade e cada um deles procura consumar tal propósito de acordo com a natureza que lhe é peculiar. O desejo de felicidade prometido pelo alvo da aspiração humana reivindica eternidade e a disposição incomum de sacrificar uma expressão relativa e limitada da satisfação desse anseio em função de um gozo maior e mais alto através de uma manifestação mais pura. Os pais morrem se preciso por seus filhos, vêem neles sua participação na imortalidade. Essa é a única realização possível aos animais. Ao homem, todavia está reservada uma tarefa de muito mais ampla magnitude, como filósofo ele deve ultrapassar o apreço aos objetos e aos corpos na demanda em direção ao amor em si mesmo, o sacrifício de afastar-se do prazer efêmero que tais objetos podem proporcionar não se compara a alegria que mesmo a simples esperança de contemplar o bem dos bens proporciona. Sacrifício aqui não indica ação desagradável imposta sobre si mesmo, mas antes o gesto supremo de fazer o sagrado (sacrum-facere).
A dualidade na obra de Platão se tomada a partir de tal exposição pode ser considerada apenas um elemento retórico ou até epistémico, aspectos cuja relevância devem-se em grande medida a nossa própria pretensão a cerca da tarefa e da natureza do exercício filosófico. Ele mesmo afirmou existirem diversas maneiras de comunicar afinidade com os diversos temas que se comunica, metáforas, analogias, números e etc. A obra de Platão visa a totalidade da existência e para a compreensão de sua filosofia é indispensável analisá-la a luz de tal expectativa. Somente a compreensão do lugar do homem no cosmos lhe permite traçar o esboço de nossa natureza e do caminho para realização de suas possibilidades, o amor é o fio de Ariadne que possibilita ao homem a superação das dualidades e também a força responsável pelo seu apego e queda, ele é o tema principal do diálogo e a própria essência deste.
Da multiplicidade fenomênica a unidade da essência pura onde o verdadeiro regogizo enche de júbilo o filósofo, a alma traça seu caminho, superando as diversas etapas, norteada pela clara luz da razão e movido pelo amor ao belo. Somente aos “prenhes segundo a alma”(Platão,o banquete.pag 76) está reservada a realização da imortalidade latente em todo o homem. A inefabilidade perpassa todos os momentos desse progresso: Do pressentimento ilustrado pela prenhez que desconhece seu rebento até a contemplação beatífica há uma compreensão que resiste a uma transmissão conceitual inequívoca, no entanto tal compreensão é causa e objetivo do raciocínio conceitual. No limiar do templo deve silenciar o discurso acerca da natureza desse bem em si mesmo. Cumpre evitar a Hibris de querer traduzi-lo por palavras, assim é a iniciação. Somente os iniciados, os que seguiram os passos apontados pela sacerdotiza podem atingir o ponto onde cessam as palavras por cessarem as dualidades.




Bibliografia


-Platão ,um banquete( trad.Jaime Bruna,ed Cultrix.Paulo 1985)


- José Américo Mota Peçanha as diversas faces do amor em Platão,A
oferta do mel

- Victor Goldchmidt A Religião de Platão(trad. Ieda e Oswaldo Porchat.
edt D.E.L.S.Paulo )

Ética e individualidade- Do Romantismo de Dostoievski ao pragmatismo de Richard Rorty

Hilton Leal

O presente artigo pretende abordar alguns aspectos da crítica da modernidade que o escritor Russo Fiodor Dostoievski desenvolve, de forma literária, no livro memórias do subsolo. Tal abordagem pretende comparar alguns pressupostos dessa critica àquela que o filósofo norte americano Richard Rorty direciona para o mesmo alvo em diversos pontos da sua obra. Esta abordagem não pretende atribuir a Dostoievski uma posição filosófica definida, e tampouco pressupor que se pode extrair da leitura da obra em questão uma tese filosófica defendida de modo propositivo. Pretendo tão somente tratar o livro Memórias do Subsolo como um exemplo de alguns aspectos da crítica romântica da modernidade e das consequências que derivam desta crítica. Ao comparar aspectos da filosofia de Rorty e da literatura de Dostoievski este artigo pretende explicitar os pressupostos absolutizantes e essencialistas do Romantismo, bem como a inclinação secularista e politizada do pragmatismo rortyano. No horizonte deste trabalho pretendo considerar que Dostoievski defende uma determinada concepção essencialista da individualidade, para a qual o racionalismo seria particularmente pernicioso tanto do ponto de vista ético quanto existencial. Rorty, em contrapartida, irá procurar defender a idéia de que não precisamos de um “fundamento racional” para as nossas opções éticas ou estéticas, e conseqüentemente, esquivar-se da alegação de que o cidadão de uma sociedade ocidental, desde que devidamente educado ou “culto”, teria necessariamente na escolha norteada pela atitude cientifica do racionalismo o paradigma da ação “legitima”.
O movimento filosófico iniciado pelo iluminismo caracteriza-se, entre outras coisas, pelo esforço em tornar seculares as nossas instituições e pela tentativa de encontrar fundamentos universais para nossas crenças e valores, sem precisar recorrer à religião para fazê-lo. Todavia, para autores como Dostoievski, alguns aspectos desse movimento resultariam em consequências indesejáveis do ponto de vista ético e existencial para os participantes de uma sociedade orientada pela cultura iluminista. Entre as obras do autor a mais representativa deste ponto de vista é o livro memórias do subsolo publicado em 1864 que é também, na opinião de críticos como Berdiaeff, uma das mais importantes obras de Dostoievski. Esta obra bem poderia ser lida como uma espécie de tese ético existencial, uma vez que todo discurso de seu protagonista desenvolve-se através de afirmações e negações de cunho valorativo e de considerações sobre a natureza da individualidade em sua relação de resistência e afirmação com o mundo. Um dos pontos mais relevantes desta tese consiste na tentativa de apontar algumas conseqüências para o individuo das mudanças perpetradas pelo racionalismo iluminista. O autor situa estas consequências no âmbito da relação do indivíduo consigo e deste com o resto da sociedade. O movimento cultural da sociedade européia do século XIX em direção ao utilitarismo, a lógica e ao positivismo é considerado, no interior desta tese, como particularmente problemático, indesejável e, no entanto, inultrapassável e irreversível.
No livro Memórias do Subsolo, o autor russo desenvolve o extenso monólogo de um personagem no qual a subjetividade do indivíduo moderno apresenta-se como um universo caótico e contraditório. Neste, através de um discurso dissolvente e desdenhoso, tal personagem procura afirmar-se em relação à razão na qual o iluminismo pretenderia basear as relações entre os indivíduos e o mundo. Tal auto-afirmação, contudo, longe de ser simples leva o protagonista do livro a recorrentes contradições, mal estar e culpa. Admitindo-se como um homem de “consciência hipertrofiada”, o qual entendo tratar-se do indivíduo moderno, o personagem central do livro parece um exemplo do que Dostoievski acreditara ser o tipo de pessoa que uma sociedade capitalista, liberal e racionalista poderia produzir. O livro também parece apresentar tal indivíduo em sua impossibilidade de recorrer ao modo pré-moderno de conceber as relações humanas. Tal crítica da concepção de racionalidade advinda da modernidade, desenvolvida também por outros autores, encontra na filosofia do norte americano Richard Rorty um novo fôlego, através de um diferente ponto de partida e objetivando propósitos diferentes daqueles de Dostoievski. Se Dostoievski parte, aparentemente, de pressupostos fisicalistas comuns a vários pensadores do século XIX, como Nietzsche, por exemplo, Rorty partirá de pressupostos pragmatistas e historicistas que imprimem um tom bem diverso ao seu discurso. Dostoievski, pelo menos segundo Berdiaeff, também teria como propósito de sua critica da modernidade o estabelecimento de uma nova instância de orientação ética, uma espécie de “Deus imanente”. Rorty ao contrário procura propor a secularização e a relativização ironista destas concepções, tanto no âmbito publico quanto no âmbito privado.
Os pressupostos de Dostoievski o levam ao desenvolvimento de uma critica de orientação existencialista que opõe o pensamento e a razão ao corpo e a vontade. A crítica Rortyana da modernidade, por sua vez, avalia este movimento por suas pretensões, vocabulários e resultados históricos, considerando então que o tipo de sociedade resultante do movimento iluminista possuiria dois aspectos. Um destes aspectos consistiria no seu espírito liberal, que visaria a progressiva secularização de nossas instituições, e a criação de uma sociedade cada vez mais inclusiva e democrática. O outro aspecto consistiria na atribuição de um papel central à razão como uma instância de legitimação dos valores sociais e mesmo dos propósitos privados.
Dostoievski parece considerar que o avanço progressivo da razão não permite a sustentação de valores liberais que somente o cristianismo poderia fundamentar, e ao qual o indivíduo “culto” do século XIX já não poderia recorrer. A atribuição de um papel central a razão parece surgir para Dostoievski como algo inevitável, e os grilhões da cultura iluminista, uma vez subjetivados, dilaceram o protagonista do memórias do subsolo, sem, no entanto deixar de apresentar-se com algo estranho e alienante. Tal indivíduo segue dividido entre a reivindicação de suas pulsões e a necessidade de “auto-respeito” que deriva da internalização das exigências de justificação da razão. A ação sancionada pela racionalidade, no entanto, apresenta-se como impossível para o protagonista, pois este nunca encontra fundamento seguro para suas escolhas. Cada tentativa de formular um juízo com base nas causas primeiras e em fundamentos racionais fracassa, pois cada causa remete sempre a uma causa anterior. Dessa forma Permanece tal indivíduo em um estado de impotência e inércia por não encontrar um principio norteador da ação ou em um estado de culpa por agir sem bases racionais que legitimem sua ação.
A narrativa literária de Dostoievski conduz o individuo moderno a uma desconfortável e contraditória posição a partir da qual sua potência intelectual leva-o a uma impotência prática enquanto os indivíduos capazes de realizar algo de modo concreto o são por não terem desenvolvido suas potências intelectuais. Desse ponto de vista a modernidade poderia ser descrita como um projeto que condenou suas próprias aspirações, inviabilizando a efetivação de suas pretensões prescritivas e morais em função de seus aspectos críticos e dissolventes. O desejo e a vontade apresentam-se nesse quadro referencial como o principio esquecido e irracional da ação humana,[1] principio esse que não se submete aos impositivos morais que a razão pretenderia prescrever às pessoas de “carne osso” como diria Miguel De Unamuno. No entanto, a vontade tampouco oferece um critério de guia que possa acalmar e oferecer o “sossego” prometido pela razão, pois quer o individuo queira, quer não, ela aí se encontra a exigir dele a satisfação de seus atos perante os seus tribunais.
Partindo de uma abordagem pragmática que leva em consideração a história, a utilidade de certas perspectivas filosóficas e as consequências epistemológicas dos trabalhos de filósofos como Wittgenstein, Rorty rejeitará o postulado iluminista acerca da necessidade de um fundamento universal para nossas deliberações. Todavia, ao contrário de Dostoievski, Rorty não desenvolverá essa rejeição recorrendo a defesa de uma natureza humana intrínseca para a qual a introjeção dos valores da cultura iluminista seria malsã. Apesar de suas inclinações românticas e estetizantes a obra rortyana em seu escopo traz uma aguda critica à perspectivas românticas como a de Dostoievski, atribuindo as mesmas o status de:
“(...) Platonismos as avessas- A tentativa romântica de enaltecer a carne em relação ao espírito, o coração em relação a mente, e uma faculdade mítica chamada “vontade” em relação a outra faculdade igualmente mítica chamada “razão.” [2]
Enquanto a perspectiva platônico - kantiana criticada por Dostoievski identifica a natureza humana com os procedimentos generalizantes da razão, o autor de memórias do subsolo critica essa razão substituindo-a pela vontade e pelo desejo. A vida, a vida da carne, da qual o espírito ou a linguagem seria apenas uma pequena parcela, constitui-se como a essência humana presumida pelo monólogo que Dostoievski desenvolve em memórias do subsolo. Refutando as pretensões do iluminismo de identificar as prescrições universalizantes do racionalismo e do utilitarismo com a natureza dos próprios indivíduos, esta literatura não deixa de defender uma descrição da natureza com pretensões de verdade, não se diferenciando, portanto, do kantianismo em relação ao seu essencialismo fundamentalista.
È preciso pontuar que Rorty está distante de Dostoievski no tempo e ciente, tanto das limitações que a tradição filosófica encontrou no vocabulário subjetivista que Dostoievski adota, quanto da indesejabilidade política e prática de sua defesa da “vontade” e da “carne” como substitutos da razão iluminista. O tom do discurso contido no livro memórias do subsolo parece enunciar algum tipo de individualismo aristocrático e pouco inclinado ao tipo de sociabilidade que Rorty acredita que poderia ser produzido pela civilização ocidental. Parece que para esse individuo tudo o que a sociedade tem a oferecer são variedades de lazeres e prescrições ético-morais de cunho universalista que servem, tão somente, para multiplicar as possibilidades sensíveis e criar uma consciência culpada pelas ações advindas dessa multiplicação, ações estas que ela não pode evitar.

“O que suaviza em nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas e multiplicidade de sensações e. Absolutamente nada mais. E através do desenvolvimento dessa multiplicidade o homem talvez chegue a sentir prazer em derramar sangue. (...) Outrora ele via justiça no massacre e destruía de consciência tranqüila, quem julgasse necessário; hoje embora consideremos esse derramamento uma ignomínia, assim mesmo ocupamo-nos dessa ignomínia, e mais ainda que outrora.” [3]
Mais otimista, Rorty considera a civilização ocidental como um experimento bem sucedido em muitos aspectos importantes, embora em risco permanente. O julgamento de Rorty baseia-se no critério pragmático segundo o qual nossos juízos são elaborados visando a viabilização de certos propósitos. Para o filósofo americano , portanto, o elogio ou a crítica do liberalismo pós-iluminista não precisa basear-se em “um conjunto transhistórico de conceitos” como vontade, desejo, natureza humana e etc. Para Rorty a sociedade ficaria muito melhor se nos livrássemos da mania metafísica que românticos como Dostoievski herdaram de Platão e passássemos a assumir uma
“(...) justificação circular de nossas práticas, uma justificação que faz parecer bonito um traço de nossa cultura citando outro, ou comparando de forma discriminatória de nossa cultura com outras , fazendo referência a nossos próprios padrões (...)”
As aspirações éticas da modernidade, acredita Rorty , poderiam ser defendidas melhor ao abrirmos mão do tipo de justificação através da adequação a “fatos” ao qual Dostoievski parece considerar muito difícil esquivar-se. As “razões” para defender estas aspirações, para Rorty, seriam muito mais produzidos pelos participantes de uma comunidade lingüística que “encontrados” por uma consciência reflexiva e impessoal do tipo platônico-cartesiano. Esta produção se daria tanto através da redescrição dos processos históricos que deram origem aos valores de nossa sociedade, bem como através da comparação entre os nossos valores e os valores de outras sociedades. Para uma cultura anti-essencialista como esta, uma cultura que tem de si mesma a imagem de experimento, seria mais adequada uma descrição da individualidade que não reivindicasse um estatuto epistêmico privilegiado, nem a defesa de uma essência do si - mesmo como Dostoievski parece fazer. Rorty opta por uma descrição da individualidade que permita a cada um de nós ver o outro como um exemplo de processo auto-criativo e não como um exemplar de fracasso ou sucesso na adequação a padrões éticos universais. A colaboração social e a inclinação para o diálogo poderiam tornar-se mais fáceis uma vez que nossos princípios éticos fossem vistos como elaborações pessoais advindas de nossa história e não como imperativos categóricos cujo cumprimento determinaria quem é ou não digno de ser escutado. Essa descrição do si - mesmo (cujo apelo auto - estetizante aproxima-se da elegia do auto-engajamento dostoievskiano, da resistência a um padrão pré- estabelecido) define a individualidade como um processo auto-criador que se utiliza da invenção de metáforas no sentido de sintetizar as vivências que o acaso coloca no caminho de cada um, elaborando assim critérios éticos pessoais.
Essa auto-criação, que cada um desenvolveria de sua própria maneira, seria a concessão que Rorty faz ao romantismo, concessão esta que faz da literatura um instrumento muito mais eficaz para a produção de tipo de vinculo social que a modernidade esperava produzir com um vocabulário cientifico que via no intelectual o paradigma da realização humana.
“Visto por esse ângulo o intelectual é apenas um caso especial – Apenas alguém que faz com marcas e com ruídos o que outras pessoas fazem com seus conjugues e filhos, seus colegas de trabalho, os instrumentos de seu oficio, as contas correntes de suas empresas, os bens que acumulam em casa, (...). Tudo, desde o som de uma palavra, passando pela cor de uma folha, até a sensação de um pedaço de pele, pode servir, como nos mostrou Freud, para dramatizar e cristalizar o sentido de identidade pessoal de um ser humano.” [4]
Essa definição da individualidade como um processo contingente de auto-construção a partir da apropriação de elementos presentes nas vivências individuais permitiria a relativização da distinção entre “contra-indicação prática e culpa moral” [5]. Tal definição também permitiria a substituição de concepções éticas ancoradas no uso de uma suposta faculdade chamada razão, pela concepção do vinculo ético baseado na ampliação da relação de lealdade que caracteriza as relações familiares. A ética rortyana procuraria esvaziar a critica da modernidade de qualquer forma de nostalgia transcendental, nostalgia essa presente em muitas obras de Dostoievski, como assinala Berdiaeff no seu livro O espirito de Dostoievski. Esse anseio seria o lado do romantismo que Rorty acredita não ser muito útil para os propósitos de uma comunidade liberal, embora inócuo se mantido no interior da esfera privada. A busca de um deus imanente, em substituição ao deus transcendente do cristianismo e a razão absoluta do iluminismo, seria o propósito por detrás da denuncia exposta no livro memórias do subsolo, um propósito de cunho estritamente pessoal e auto-estetizante.
Contudo, ao evocar também uma atitude de auto-engajamento o livro de Dostoievski poderia ser lido como exercendo uma ação terapêutica sobre certas inclinações “clericais” de nossa cultura, leitura que me parece semelhante a que Rorty faz de Freud[6]. Dessa maneira poderíamos dar uma relevância especial a seus aspectos críticos e negativos, desejando ver a mesma suspeita em relação a razão difundida em nossa cultura, e enquanto circunscrevemos ao âmbito privado sua demanda por um deus imanente, ou sua elegia da vontade e do desejo. Diríamos então que Dostoievski opõe as potências desejantes, contingentes e indeterminadas dos indivíduos em seu anseio de auto-realização às pretensões do universalismo racionalista. Essa possível conciliação entre o escritor com pretensões presumivelmente filosóficas e o filósofo com inclinações declaradamente literárias, obviamente contempla muito mais os propósitos do segundo que do primeiro. Todavia, a convergência não é acidental se considerarmos o neo-pragmatismo rortyano como uma tentativa de dar continuidade ao processo iniciado com o romantismo, processo esse que levou-nos a considerar o homem como “a medida de todas as coisas” como diria Protágoras. Esse processo, o próprio romantismo não teria consumado devido a sua defesa do advento de uma novo tipo de sacralidade ao qual os homens deveriam submeter os propósitos e contigências caracteristicos de suas vidas.
Referências

Dostoiévski, Fiódor- Memórias do Subsolo- Trad. Boris Schnaiderman Ed. 34 – SP 2000
Rorty, Richard- Ironia Contigência e Solidariedade- Trad. Vera Ribeiro Ed. Martins Fontes SP 2007
Berdiaeff, N. - O espírito de Dostoievski- Trad. Otto Schneider. Rio de Janeiro:
Editora Panamericana, [194-?]


[1] “Realmente eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, derrepente, em meio a toda sensatez futura , surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombeteira, e, pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo e que mais uma vez possamos viver de acordo com a nossa estúpida vontade?! Isso ainda não seria nada, mais lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: Assim é o homem.” Dostoiévski, Fiodor – Memórias do subsolo pg. 38
[2] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg. 73
[3] Dostoiévski, Fiodor - Memórias do Subsolo pg. 36
[4] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg. 79
[5] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg.72
[6] Considero que a leitura rortyana de Freud procura dar pouca relevância a sua metapsicologia, conferindo-lhe o estatuto de mera “hipótese de trabalho”, enquanto confere particular importância a sua concepção acerca do desenvolvimento da personalidade a partir da interação com o mundo circundante.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Considerações sobre a Filosofia oriental

O mundo ocidental, em sua grande maioria, desconhece ou dá pouca importância a produção intelectual do extremo oriente. Esse desconhecimento deve-se a questões histórico culturais que impediram o estabelecimento de uma mesma pauta de objetivos para ambas as tradições. A filosofia oriental geralmente é interpretada pelos pesquisadores de nossas academias no interior do quadro referencial do ocidente. Dessa forma costumamos colocar pensadores como Chuang-Tsé ao lado de filósofos como Tomaz de Aquino ou Platão ao passo que lateralizamos autores como Sun-Tsé a Machiavel, por exemplo. Um equívoco, penso, irreparável e inultrapassável. Não temos outro instrumentos para pensar outra cultura senão aqueles fornecidos por nossa própria cultura. Vários autores, como D.T Suzuki, por exemplo, esforçaram-se para levantar as diferenças entre nossa filosofia acadêmica e a filosofia oriental. Todavia, o próprio Suzuki tentou levantar também as semelhanças entre a filosofia oriental e o misticismo alemão, por exemplo. Não que essas semelhanças não existam, porém para indivíduos como nós que participaram de todo processo de condicionamento e escolarização essas comparações são todas malsãs e não prestam-se senão a um eruditismo vão. Como venho defendendo em outro tópicos, a experimentação e a experiência possuem um valor intrínseco e nem sempre partilhável. Uma filosofia nada é senão a sugestão de um modo especifico de vida, a sugestão a lidar com as coisas de certo modo. A filosofia oriental, sob esse viés poderia sugerir uma maneira nova De lidar com as coisas. Qual seria essa maneira? Não possuo essa resposta. Creio que ela deverá variar de pessoa para pessoa. É preciso ler, e sondar as possibilidades dessa leitura para a vida de cada um .

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Violência passional: Fidelidade ou fragilidade?

A sociedade, ou pelo menos alguns setores desta, tem procurado há algum tempo organizar-se no sentido de erradicar da nossa cultura a violência contra a mulher, que sabemos ter raízes profundas em nossa história. Vivemos em um tempo em que se generaliza cada vez mais a consciência da inaceitabilidade do uso de coerção física ou moral em outros indivíduos por motivos passionais ou mesquinhos, principalmente quando esses indivíduos estão em desvantagem física. No entanto esta consciência ainda frágil e difusa bem como a militância de grupos engajados na defesa dos direitos da mulher, ainda não conseguem coibir o impulso para a perpetração de crimes hediondos como o que deixou toda a sociedade estarrecida essa semana. Ao nos depararmos com situações absurdas e revoltantes como essa em que um homem, aparentemente equilibrado e produtivo, tortura de forma hedionda sua companheira por horas, uma das perguntas que nos ocorrem é a seguinte: Será que esse comportamento surgiu de forma inesperada? Será que não houveram sinais de que o agressor seria capaz perpetrar tal ato? É difícil, muito difícil acreditar que não, ainda que isso não seja impossível. Todavia, se houveram sinais dessa possibilidade, porque a vitima manteve os vínculos afetivos e sociais, ou pelo menos não denunciou ao primeiro sinal de agressividade? Não é nosso propósito remeter esses questionamentos para a esfera privada, nem tampouco situar no âmbito da subjetividade as respostas aos mesmos. Pretendo, todavia, sondar a possível relação entre nossa demanda pelo fim da violência dentro de nossos lares e nossa forma de conceber os vínculos de afeto que estabelecemos com nossos parceiros e parceiras. Nossa tese é a de que um dos principais entraves para a erradicação da violência contra a mulher é, além do machismo entranhado em nossos modos e costumes, a permanência de um modo atávico de conceber o vínculo afetivo. Esse modo, herdado de nossos antepassados cristãos e medievais, nos colocaria na peculiar posição de exigir de nossos parceiros e parceiras determinados comportamentos incongruentes com nossa concepção de que ninguém pode ter sua liberdade tolhida pelo uso da força, seja ela qual for.
Creio que é um fato relativamente reconhecido que as relações afetivas, bem como toda valoração que tem raízes culturais, possui um vínculo estreito com a dinâmica econômica da sociedade. Não sustento que se pode reduzir toda escolha individual a relações econômicas, mas tampouco creio que se pode conceber que nossos sentimentos não tem relação alguma com a essas relações. Nesse sentido podemos pontuar que nos últimos 50 ou 60 anos têm-se visto, por diversos motivos, a progressiva assimilação da mulher ao mercado de trabalho. A possibilidade de ter sua própria renda, de planejar sua carreira, de estabelecer seu próprio circulo de relações sem a necessidade da intermediação do parceiro levou conseqüentemente a revisão de papeis dentro dos relacionamentos afetivos. Todavia, teriam apenas os papeis mudado, ficando preservada dessa mudança nossos afetos e expectativas em relação aos nossos parceiros e parceiras? Antes das mudanças que citamos a mulher era considerada, dizem alguns estudiosos, uma extensão da propriedade masculina, sendo tanto seu corpo, como seus sentimentos, algo vinculado de maneira definitiva ao seu marido e proprietário. Dessa forma não se esperava da mulher mais que abnegada dedicação, eterna fidelidade mesmo ao preço da negação de si. Na esteira da inclusão econômica veio, entretanto, o direito ao divorcio, e com este o fim dos direitos de propriedade de um indivíduo sobre o outro, pelo menos do ponto de vista político. No que tange as nossas expectativas em relação aos nossos parceiros e parceiras, entretanto, houveram mudanças? Esperamos mais que dedicação eterna? Esperamos que os sentimentos dos mesmos permaneçam vinculados a nossas pessoas de maneira definitiva? A infidelidade apresenta-se em nossa retina como um gesto afetivo advindo do uso legitimo da liberdade, ou antes, como um comportamento criminoso, que mereceria punição? É claro que esse gesto afetivo pode ser inaceitável para um parceiro ou parceira, mas isso é diferente de considerá-lo criminoso ou imoral. A imoralidade que atribuímos a esse gesto advêm de nossas expectativas em relação ao amor. Amar, segundo a nossa herança católico cristã, é identificar em alguém uma “essência”, algo de totalmente particular e pessoal e afeiçoar-se a tal essência. Logo, se aquele que disse ter descoberto em nós essa essência que conduziu ao florescimento do afeto, se envolve com alguém que não tem tal essência –Uma vez que somente nós a possuímos- então existe aí uma traição, uma perfídia... Uma infidelidade a nossa essência.
Mas o vocabulário que vincula o amor a existência de uma essência- Uma alma, para ser mais especifico- É totalmente antiliberal e moralista, pois quando exigimos que a liberdade, a subjetividade de um outro indivíduo submeta-se a concepções morais que não são advindas de nossa legislação abrimos as portas para a tortura e para a violência. A dependência econômica, o excesso de expectativa em relação ao parceiro ou parceira, a atribuição desmedida de valor ao outro em detrimento de seu próprio, somados a esse vínculo sagrado entre dois corpos desaguaria em situações como a que tivemos conhecimento recentemente. O ultimo fator, objeto deste ensaio, é, no meu entender, o que permite que o agressor sinta-se legitimado em seus anseios homicidas enquanto a vitima não o denunciaria porque também acreditaria na legitimidade da fúria, caso tivesse havido realmente a infidelidade. Como tal não ocorreu, a pessoa injuriada e agredida permanece dentro do relacionamento, sem denunciar, esperando conseguir provar a sua inocência a posteriori. Infelizmente, raramente esses anseios por redenção diante do olhar de um verdugo terminam bem. A necessidade de retirar do outro sua liberdade reduzindo-o a mera coisa, mera propriedade sobre a qual se tem total conhecimento e da qual todos os atos são conhecidos e previsíveis caracterizam-se pela crueldade progressiva ou pela constante relação de suspeita e conflito. Infelizmente esses valores não são reforçados exclusivamente pelos homens, embora eu reconheça que as mulheres são suas maiores vitimas. Todos reforçamos esses hábitos, em nossas piadas sobre traição, em nosso vocabulário que dá uma expressão significativa a palavras “corno”, “traída”, “trocado” etc, a importância que damos a sexualidade alheia, em nossa inclinação a compararmo-nos com outros indivíduos e medir a qualidade de nosso relacionamento através dessas comparações. Não quero reduzir a violência contra a mulher aos motivos aqui listados. Não sou estudioso do assunto e posso estar equivocado em muitas das observações aqui desenvolvidas. Pretendia antes com esse breve ensaio propor uma reflexão acerca do tipo de vida que desejamos viver e dos valores que pretenderiam consumar esses desejos. As mudanças valorativas geralmente são mais lentas que as mudanças políticas e por isso, é bem mais prático que milite-se por objetivos como a aplicação efetiva de leis como a Maria da Penha, que pune a violência contra mulher, do que pela mudança de nossa maneira de conceber o vínculo afetivo. Essa luta, entretanto, não nos isenta no nível pessoal do compromisso com a gestão de nossas relações, nem com os resultados produzidos pelo tipo de relações que estabelecemos com o risco de alimentarmos valores que são contradi´torios com nosso ideal de erradicar o crime passional.

sábado, 11 de julho de 2009

Amor e justificação, um ensaio sobre o afeto hoje em dia.

O prazer, é o paradigma de nossas decisões. A ética é o expediente de nosso comportamento. As duas proposições anteriores adaptadas de Max Stirner e Wiliam James servirão de baliza para esse ensaio. Todos querem o prazer , mas entre os prazeres ou satisfações que procuramos inclui-se o de sentir-se justificado nas ações perpetradas com a finalidade de atingir esses objetivos. O prazer, todavia, como Max Stirner, Freud, Nietzsche e outros observam, não se reduz e sensações advindas de nossos órgãos. Toda finalidade da ação humana poderia ser descrita com um objeto de prazer, como um propósito digno de servir-nos de meta para nossa ação. Todavia não vivemos sozinhos e muitos de nossos prazeres, ou metas, são possíveis apenas mediante a cooperação de outras pessoas. Atribuímos centralidade ao prazer advindo da convivência social, centralidade esta que poderíamos explicar recorrendo a uma vontade mística de dissolver nosso eu em um tu. Todavia, esta mesma relevância e inclinação para a convivência e para o estabelecimento de vínculos definitivos poderia ser explicada pelo condicionamento para a sociabilidade e sobrevivência em grupo. No primeiro caso a sociabilidade seria descrita em termos religiosos e mesmos Sagrados, em detrimentos dos expedientes privados e dos propósitos para os quais as metáforas prestam-se bem mais que a linguagem cientifica ou filosófica. Em contrapartida, quem preferir a segunda explicação considerará a sociedade um mero meio para obter fins privados que tem no próprio indivíduo sua finalidade e regulação. A explicação que dermos para a relevância do vínculo social, nesse caso, me parece que derivará apenas de nossas própria pretensões relativas a esse vínculo. O que considero mais importante, entretanto, é a relação entre ações e justificativas, ou melhor entre nossa relação de dupla dependência em relação a nós mesmos e em relação ao meio que nos cerca. Essa relação de resistência e de atrito entre o público e o privado é mais explicita em questões de afeto. Amamos as pessoas, apenas para amá-las e nada mais, porque o amor é seu próprio fim, como querem os místicos e alguns filósofos, ou amamos com vistas a nossa realização pessoal ? A resposta, a meu ver, passa pela seguinte questão: O que nos dá mais prazer, o que nos realiza mais: propósitos comunais e públicos ou pessoais e privados? Não creio que possamos sair desse impasse. Qualquer resposta a essa questão reconduz aquele que indaga as metas que estabelece para seus atos, inclusive o ato de elaborar tal pergunta. Por outro lado, cabe dizer, o âmbito publico e muitos casos assimila o privado, como por exemplo em algumas relações familiares. Nestes casos os limites éticos não representam uma barreira estranha diante da qual a própria realização tem que prestar contas. As prescrições comportamentais apresentam-se, antes, como os próprios alvos da satisfação pessoal. Todavia, essa adequação é contingente e conquanto seja um dos casos, não temos motivos para acreditar que a cultura deva coroá-la.
Se não possuímos uma ordem ético moral antecedente a qualquer indagação não temos também como condenar de forma absoluta qualquer demanda pessoal. Nossas valorações terão por fundamento, nesse caso, as imagens que nos fascinam, as experiências que tivemos e os temores que tentamos exorcizar com ações e palavras. Contudo, o atrito entre o publico e o privado persiste, pois, o duplo vínculo estabelecido a partir da relação de prazer e justificação leva-nos a tentar reduzir o outro ao serviço de nossas demandas de forma integral. Queremos não apenas os beijos daqueles a quem amamos, queremos que esse desejo seja nobre e legitimo, se não é possível fazê-lo, pois os limites éticos alheios nos colocam em posição desvantajosa, os redescrevemos como estúpidos, fracos, cristãos etc. Queremos que nossas necessidades pessoais venham com o selo da necessidade ética, e que quem não aceita satisfazê-la pelo menos se reduza ao reconhecimento de sua culpa, esse seria o segundo prazer do qual não abrimos mão
Poderíamos descrever esse atrito, ou a sua força como derivada de nosso passado cristão, bem como também poderíamos descrevê-lo como derivado da patologia individualista advinda do capitalismo que nos tornou insensíveis aos legítimos apelos da moral comunitária. Eu prefiro assumir a primeira explicação e como Rorty imaginar uma comunidade pós metafísica na qual a dor da privação de um desejo não precisaria vir acompanhada da acusação de imoralidade à pessoa que dele nos priva. Uma comunidade assim nortearia seu julgamento em relação a outros indivíduos pelas máximas éticas que norteiam a prática jurídica, condenando como imorais apenas as ações que constituem um prejuízo para a vida coletiva em uma sociedade totalmente laicizada .

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Observações sobre orealismo pragmático de Habermas

O presente artigo pretende acompanhar o argumento exposto por Jürgen Habermas em seu texto “Comentários sobre verdade e justificação” com o propósito de confrontar a sua defesa do que ele denomina de um “realismo pragmático” com algumas objeções elencadas por autores como Richard Rorty, por exemplo. Como meta complementar também tentarei verificar o alcance de algumas asserções utilizadas por Habermas na defesa de sua pragmática Kantiana no sentido de sondar os limites de suas pretensões formalistas no interior de um quadro referencial “pragmatista”.
O texto de Jürgen Habermas “Comentários sobre verdade e justificação” apresenta-se como uma brilhante peça da produção filosófica contemporânea. Breve em sua extensão, esclarecedor e conciso no seu estilo, e, no entanto, denso no seu conteúdo. O desenvolvimento de seu discurso é norteado pela procura por uma instancia formal de verificação da verdade dos argumentos de participantes de um diálogo. Pretenderia ele assim estabelecer as bases de uma política democrática livre dos riscos de discursos distorcidos e “fascistas”. O núcleo do referido texto compõe-se de uma defesa do que seria um realismo sem representação(que lhe permitira esquivar-se de objeções feitas ao kantismo) e da possibilidade de conciliação dessa posição epistêmica com o construtivismo moral. Começando peça apresentação da tradição hermenêutica, cujo propósito central para Habermas seria a analise da função por meio da qual a linguagem revela o mundo, o filosofo alemão lateraliza a esta corrente a filosofia analítica. Nesta ultima Habermas identifica como principal preocupação a função representativa da linguagem, ou a relação entre sentença e fato. Segundo o ponto de vista desenvolvido no texto, ambas as correntes cometeriam “falácias abstrativas”[1] ao desconsiderar os aspectos pragmáticos do dialógo, ou seja, as características do ato comunicativo cuja semântica está vinculada a necessidade de resolver problemas de ordem pratica.
Dirigindo a Hermenêutica e a filosofia analítica a acusação de serem demasiado abstratas, me parece que Habermas opta por uma linha critica que de certa maneira antecipa suas pretensões de mostrar-se comprometido com o espírito anti-metafisico da pós-modernidade, o que, no caso de Habermas, não implica o abandono das pretensões de universalidade dessa mesma metafísica. A narrativa Habermasiana, todavia, ao contrario de outros sistemas críticos não se estabelecerá a partir da desqualificação dos sistemas aqui denunciados como muito “abstratos”. A categorização por ele utilizada cumpre, no meu entender, um papel acessório cujo propósito é inserir ambas as correntes filosóficas em uma descrição em camadas do ato comunicativo, ou, como ele mesmo fala referindo-se a Humboldt em “três níveis analiticos diferentes” . Esses níveis seriam ocupados pelas duas tradições supra citadas e pelo terceiro nível mediano no qual ele mesmo situa-se e que denomina de “pragmática formal” ou de “Pragmatismo kantiano”. Desse ponto intermediário Habermas irá posicionar-se no sentido de fornecer a sua versão do que seria uma epistemologia isenta dos vícios da Hermenêutica e da filosofia analítica.
No entender Habermasiano o contextualismo hermenêutico e a analise demasiado técnica da filosofia analítica se manteriam desvinculados da práxis, sendo essa a sua principal limitação. Ambas as tradições deixariam de dar conta da experiência de senso comum de supor a existência de um mundo real como fundamento necessário para nossas ações , embora tenham, a seu favor o fato de que são conseqüentes em relação a observação de que não temos acesso a realidade em si mesma. Segue-se dessa constatação que para Habermas a filosofia contemporânea deveria buscar a conciliação do realismo inserido no senso comum com uma atitude “Darwinista” sem adotar uma postura representacionista diante desse mundo supostamente o mesmo para todos nós. A tal posição filosófica Habermas denomina de “realismo Kantiano”. Para o filosofo a regularidade com a qual nos desincumbimos de nossas tarefas no dia-a-dia, bem como a necessidade de ter que lidar com problemas dos quais não podemos escapar seriam atestados da crença inescapável em um mundo que é o mesmo para todos nós. “O mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no mundo”[2]. Devo confessar que me parece pouco claro como Habermas deriva do fato de que todos somos convocados a ação através de situações que fogem a nosso controle, e de que supomos em nossa relação com o mundo algum tipo de regularidade, a afirmação de uma totalidade supostamente a mesma para todos nós. “Linguagens diferentes, pontos de vista diferentes, capazes, entretanto, de se referir as mesmas coisas”.[3] Os objetos aos quais estariam vinculadas as diversas praticas comunicativas seriam, portanto, os mesmos para todas as pessoas, embora elas utilizem palavras e valorações distintas. Esses objetos, entretanto, me parece que possuiriam um caráter meramente formal ou pré-reflexivo ou não poderiam ser dissociados dos pontos de vista das pessoas que com tais objetos se relacionam. Penso que uma das questões a serem colocadas a partir dessas afirmações seria a seguinte: É realmente possível separar os constrangimentos impostos pelo mundo, o problemático, do ambiente cultural e do quadro de referências valorativas no qual esses mesmos constrangimentos ocorrem? Ou colocando a questão em outros termos, o que é considerado relevantemente problemático a ponto de possibilitar uma inclinação ao consenso, não dependeria muito mais dos interesses determinados de antemão por pontos de vista diferentes do que por qualquer mundo não refletido e a priori?
Para Habermas, todavia, essas questões são resolvidas através da necessidade de convergência buscada pelos indivíduos ao enfrentarem problemas práticos. O mundo não refletido das nossas ações seria não só a condição de possibilidade para a ação como também para o entendimento representando um ultrapasssamento de uma concepção falibilista de verdade como justificação. “Para dirigir um carro ou atravessar uma ponte, não partimos de uma atitude hipotética refletindo a cada passo sobre o know-how tecnológico ou estatístico dos projetistas”.[4] A confiança que cristaliza nossos hábitos e certezas possibilitando uma ação não refletida seria o modelo Habermasiano de uma verdade sem representação. Mas é mesmo possível atribuir ao senso comum e a confiança na estabilidade de nossas relações com o mundo o estatuto de algo “incondicionalmente verdadeiro”[5] Creio que dificilmente alguém que todos os dias atravessa a mesma ponte afirmaria ter certeza incondicional acerca da segurança da mesma se interrogado sobre a possibilidade de uma acidente. Provavelmente a resposta sobre essa questão seria “Não tenho motivos até aqui para duvidar de que seja segura”. O que reconduziria ao falibilismo e ao falsificacionismo a aparente certeza inserida no senso comum.
Todavia, é inegável que a hipótese Habermasiana possui um forte apelo a intuição cotidiana que nos leva a equiparar os termos “confiança” a “verdade”. Em ultima instância é de fato a segurança “incondicional” que os homens aspiram quando buscam a verdade. Mas essa intuição não me parece sólida o bastante para afirmar a correspondência entre os dois termos. Verdade seria de qualquer maneira uma expectativa ideal de segurança. Ademais, mesmo que de fato o senso comum suponha qualquer estabilidade em relação a nossas idéias que dizem respeito ao mundo e(pelo fato de se terem tornado confiáveis) pretendamos universalizá-las, essa suposição não é garantia de consenso. Também é um fato facilmente observável que qualquer conjuntos de idéias e praticas religiosas ou culturais que ofereça para seus usuários os resultados por eles desejados poderiam ser universalizáveis seguindo o mesmo critério sem, todavia, levar ao consenso na maioria das vezes. A opção Rortyana me parece mais eficaz, pois segundo o filosofo americano deveríamos recorrer diretamente aos interesses e sentimentos das pessoas, a imaginação como recurso para a construção do consenso ao invés da demanda por uma instância a priori de fundamentação dos discursos (ainda que naturalizada e “pós-moderna”).
A argumentação Habermasiana gira em torno da busca por condições universais que tornariam possíveis as práticas comunicativas. Essa demanda deriva de seu desejo de estabelecer as bases da cooperação e da justiça em uma sociedade democrática. Caberia para o filosofo e para a filosofia um lugar privilegiado enquanto interprete da “verdadeira” natureza dos discursos, pois somente recorrendo aos fundamentos de nossas praticas comunicativas poderíamos refutar discursos totalitários e unilaterais. Refutar “teoricamente” o relativismo constitui-se, portanto, em um projeto político, cuja principal aspiração é colocar a segurança e a verdade no lugar da experimentação e da arte. Em Richard Rorty, Habermas encontrou um dos mais recentes defensores do Relativismo e do consensualismo como fundamentais para a política democrática. Para Rorty as refutações teóricas elencadas por Habermas ao relativismo, bem como a sua defesa de um realismo sem representação não são tão importantes quanto a verificação da possível relevância e da funcionalidade de uma teoria da verdade para o propósito de realizar o ideal de uma sociedade includente. Todavia, a rejeição por ambos os autores de formas de discurso que possam ocasionar o fracasso dos ideais cosmopolitas e democratas, tornam tais diferenças muito pequenas no campo da ação. A opção Habermasiana serviria, sobretudo, como opção retórica para aqueles que ainda estão inclinados a buscar em “fundamentos” ,no sentido forte da palavra, a sanção para suas esperanças.

Bibliografia

-A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen. Trad. Marcello Brandão Cipolla.Ed. Martins Fontes SP 2007
-Filosofia Racionalidade e Democracia (a inserir demais Dados)
[1] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 52.
[2] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 58.
[3] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 58.
[4] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 62.
[5] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág. 61

Max Stirner e a pedagogia Moderna

.

O problema da relação entre o individuo e o mundo e do papel mediador da consciência no interior dessa relação caracteriza um dos núcleos temáticos considerados mais relevantes para a filosofia moderna. As repercussões das abordagens filosóficas a essa e outras questões que dela derivam orientaram muitas teses em áreas bem diversas da atividade humana como direito, política e pedagogia. Com o propósito de realizar uma abordagem da critica do filósofo alemão Max Stirner à pedagogia moderna, iremos acompanhar o questionamento que ele desenvolve dos pressupostos generalizantes e formalistas desse campo de atividade, pressupostos estes alinhados com a tendência histórica que ele denomina “a ascensão do espírito”. Segundo o mesmo, essa tendência caracterizaria-se por um contínuo processo de espiritualização da realidade, que se consuma na modernidade e nas suas concepções sobre o homem como “ser genérico” e racional e da educação como atividade que visaria levar a realização dos ideais de igualdade e liberdade na sociedade através do desenvolvimento de potências supostamente intrínsecas aos indivíduos. Nossa abordagem, todavia, não pretende confrontar as teses do autor com os conteúdos positivos das diversas teorias existentes hoje no campo da pedagogia, mas apenas indicar a posição de Stirner com relação tendências comuns aos pressupostos filosóficos dessas mesmas teorias e, principalmente, desenvolver a sua defesa do desenvolvimento da autonomia como fundamental para o sucesso da atividade pedagógica.
Para a tradição filosófica que começou com Platão, conhecer seria a principal atividade da vida dos indivíduos, uma atividade que constituiria a própria essência destes, e de cujo modo de efetivação o seu valor dependeria. Desde o principio essa concepção esteve associada a uma duplicação do mundo em um mundo aparente e um mundo real, separação essa que situava a consciência humana entre os dois incumbindo-lhe a missão de passar da aparência ao real, da opinião ao ser. Essa atitude caracteristicamente essencialista teria como conseqüência a determinação da natureza dos indivíduos em sua essência a partir da relação entre os pensamentos ou proposições destes e a sua verdade, o que os definiria como pessoas cultas ou incultas, sábias ou ignorantes,conscientes ou alienadas. No período histórico que conhecemos sob o nome de modernidade essa determinação da realidade a partir da relação entre o fenômeno considerado e uma instancia superior será de fundamental importância. É na base da busca de legitimidade das instituições diante das exigências razão humana, que o movimento de liberação promovido pela burguesia do século XVIII consumará o processo de racionalização da realidade iniciado com Sócrates e Platão e popularizado pelo cristianismo. Tal processo, por sua vez, conduzirá a emancipação da sociedade em relação as arbitrariedades da religião, e do conhecimento em relação aos dogmas do clero. Em contrapartida, esse mesmo movimento será responsável pela instauração da racionalidade como a legisladora, que passará a submeter ao seu crivo todas as relações entre os homens.
Como conseqüência de tal racionalização às pessoas passariam a considerar o pensamento, ou a razão, como fatores decisivos para a emancipação de potencias arbitrarias como a religião e a monarquia, mas outro lado, as idéias, ou o espírito, tornar-se-iam o aspecto mais venerável da existência, consumando-se como essência dos indivíduos e do mundo. “Por isso é que Descartes, para quem isso finalmente se tornou claro, pôde construir a proposição: penso, logo existo” [1] Assinala Stirner, e conclui que, portanto: “Só vivo quando vivo espiritualmente, só sou real como espírito” [2] Na mesma direção a moral, antes vinculada a religiosidade, se subjetivaria, tornando-se uma “força interior” como autodeterminação segundo a lei, como por exemplo, no imperativo categórico Kantiano, o que resultaria na negação de si, enquanto individuo singular através da afirmação de uma “lei geral”, ou seja, um de novo senhor.
Essa seria a espiritualização do mundo, a ascensão do espírito levada a efeito pela modernidade, um movimento que, segundo Stirner, tem como conseqüência o ônus da obsessão pelas idéias e pelo pensamento “que não conhece nem reconhece nada que não seja espírito” [3] e que acarreta a sacralização do pensamento, como se este não fosse apenas uma coisa entre outras coisas, mas “pelo contrário, o que há de mais real, o mais verdadeiramente verdadeiro do mundo”. [4] Estabeleceria-se assim uma divisão que torna apenas “aparência” o que antes era o próprio mundo, enquanto os predicados se substancializam, tornando-se dessa forma “essências”, ou aquilo que seria de fato existente. Esse movimento de espiritualização do mundo tem por expressão política o que Stirner denomina as hierarquias que nada mais são que as escalas valorativas na base das quais aqueles que se apóiam nos pensamentos exercem seu poder, submetendo o valor atribuído a atividade dos indivíduos ao crivo dos pensamentos, separando as pessoas em cultas e incultas, altruístas e egoístas. Caberia então ao educador imbuído de tais convicções tentar exercer uma atividade coercitiva do pensamento sobre a natureza, procurando despertar nos alunos sua vocação humana, “melhorando” a sua índole, “desenvolvendo sua razão” e tentando sufocar todo interesse pessoal, todo egoísmo, através da imposição de conhecimentos e valores. Como fardos, esses conteúdos pesarão sob o indivíduo e impedirão qualquer manifestação própria, qualquer atitude de ironia ou desdém, em relação a tais questões serias e sagradas, ou sentimentos absolutos. “Quem é que de forma mais ou menos consciente nunca reparou que toda nossa educação está voltada para produzir em nós sentimentos, ou seja, de os impor, em vez de nos deixar a iniciativa de os produzir, quaisquer que eles sejam?”[5] Essa determinação tornaria toda pedagogia o que Stirner denomina uma “pastoral das almas”, uma cruzada permanente pela supressão da singularidade dos indivíduos através da interiorização de sentimentos e noções absolutas “Deus, a imortalidade, a liberdade o humanitarismo como idéias e sentimentos que mais forte ou mais leve atingem a nossa interioridade”[6] sufocando a sadia tendência a oposição, através da “afinação com o que os outros acham correto.”[7]
Como se pode observar a pedagogia de caráter iluminista sob o viés Stineriano apresenta-se como uma atividade de coerção voltada para a constrição da vontade individual e livre, através do recuso da atribuição de auto-subsistência e universalidade as idéias, como método persuasivo. Tentando libertar os homens de sua determinação natural, tida como temerosamente afetiva, e dotando-os apenas de noções que visariam realizá-los como espíritos livres, os educadores não desenvolveriam nos alunos as potências volitivas que permitiriam a utilização dessas mesmas noções para a realização pessoal, segundo os interesses característicos de cada indivíduo. Uma das causas da limitação de tal pedagogia, segundo Stirner, estaria em seu permanente impulso para a liberdade, que tomaria por liberdade, no entanto, apenas “a liberdade em relação a pessoas”, “arbitrariedades” e ao instinto sem dar a relevância devida à questão da “autodeterminação” que permitira “A ação em que o individuo livre em si se reconhece, em que se manifesta um espírito resolutamente voltado para a ação, quer dizer, livre das flutuações da reflexão”[8] ou seja, livre da necessidade da sanção oferecida pela razão, pela verdade, em síntese: pelo absoluto. A sutileza de tal abordagem, que ultrapassa o relativismo teórico, está em trazer à baila a problemática da “liberdade”, fundamental para o desenvolvimento do pensamento filosófico ligado a educação, sob o enfoque da “relação” no interior da qual a questão da liberdade é colocada. Considerada sob esse viés a liberdade seria uma noção apenas negativa, sem conteúdo, que nada diria sobre o que fazer após sua aquisição. Segundo Stirner essa liberdade poderia ser pensada de duas maneiras: como liberdade total, e dessa maneira irrealizável, ou como uma liberdade “determinada”, que terminaria estabelecendo uma nova dominação. A liberdade oferecida ou legitimada pelo pensamento liberal moderno é do primeiro tipo. Ela situa-se no interior da relação de afirmação da “ordem racional” dos valores modernos, agora “sagrados”, diante da ordem contingente da arbitrariedade do costume, dos instintos e da religião. Esta “liberdade determinada” não ofereceria, segundo Stirner, nenhum espaço para a auto-determinação, constituindo apenas uma meta parcial no processo de emancipação do individuo, cuja dinâmica cria sempre novas liberdades, se preciso em relação a própria razão, rejeitando portanto o feitio tutelar da pedagogia que pretende “ensinar” como tornar-se “livre”.
Para Stirner liberdade seria, sobretudo, auto-libertação, apropriação e anulação da aura de poder e sacralidade que reveste muitas das coisas que vem ao encontro do homem. Essa potência estaria submetida a relação de afirmação e gozo entre as pessoas e o mundo que as cerca. Não somente a liberdade, portanto, mas antes de tudo a afirmação de si ou o egoísmo seriam os pontos centrais da educação. “a liberdade apela contra tudo que não sois, o egoísmo apela para o jubilo de serdes vós proprios”[9] Então já não falaríamos em liberdade somente, pois estaríamos afirmando algo de positivo, a singularidade própria, que aceita a redução da liberdade quando isso implica a satisfação de um interesse, mas que se desfaz e rejeita de tudo que lhe é estranho. Esta é a pedra angular da auto-realização sobre a qual Stirner acredita que a pedagogia deveria se desenvolver, pois permitiria a utilização de todos os conteúdos transmitidos pelo educador de maneira totalmente pessoal, ultrapassando as pretensões racionalistas da modernidade.
Todavia, não é sob a alegação da falsidade ou da inverdade dessas pretensões da modernidade que se desenvolverá a crítica Stineriana, nem é com um recurso a fundamentos que ele irá desenvolver a sua defesa da “autonomia da vontade”. Contornando a acusação de auto-contradição que comumente costuma pesar sobre anti-essencialistas que denunciam os exageros da razão, Stirner apontará para as pretensões liberalizantes e emancipacionistas da própria filosofia moderna no sentido de opô-las as tendências religiosas dessas mesmas correntes de pensamento, assumindo desde o inicio o caráter pessoal de sua retórica. Vimos que a narrativa da modernidade identificava o desenvolvimento do homem com o desenvolvimento da razão, do espírito, e que essa concepção representava a conquista de uma certa autonomia em relação ás potencias arbitrarias da natureza e da religião. Todavia, o mesmo movimento também trazia consigo o risco da instituição de uma nova instancia de opressão, ainda mais poderosa, porque impessoal e sagrada, ou seja, a razão. O discurso stineriano se direcionará à esse mesmo anseio por emancipação e afirmação de si característico da modernidade, aspiração que ele denomina no texto O falso principio de nossa educação de “espírito de nosso tempo”. Conquanto a expressão “espírito” tenha outras conotações na obra de Max Stirner, aqui esse termo que deve ser entendido no sentido de uma inclinação ou direção comum a diversas idéias, praticas e sentimentos de seu tempo. Utilizando-se dessa hipotética “tendência” liberalizante, Stirner denúncia como entraves para a consumação da mesma o apego a herança cristã de nosso passado e o espírito reformista da própria modernidade, na base dos quais, no entanto, encontram-se adormecidas as potencias volitivas e instintivas dos indivíduos, sendo exatamente a esses “interesses” voltada a critica Stineriana, o que coloca a critica teórica no mesmo nível de qualquer atitude de refutação.
Colocando-se de maneira eminente historicista e re-situando a atitude essencialista a partir dessa “atmosfera” Stirner irá desenvolver a sua narrativa de “uma vida humana” no seu livro principal, O único e sua propriedade. Neste, será a oposição entre o individuo e o mundo, a partir do momento em que neste se vê lançado “sem orientação”, que constituirá a mola do desenvolvimento do individuo, de maneira que a partir de seu nascimento: “tudo aquilo com o que a criança entra em contato se rebela contra as suas intervenções e afirma a sua própria existência”[10] sendo a luta por afirmação por parte de ambos inevitável, só restaria a cada um tentar superar o outro através dos recursos a sua disposição e dessa forma: “na infância a libertação seguiria mais ou menos por este caminho: queremos descobrir a razão de ser das coisas, ou o que se esconde por trás delas.”[11] O que decorreria dessa descoberta ou desse “desencantamento” daquilo que antes exercia tanto poder e temor sobre o infante seria a acentuação do sentimento de si pois “quando julgamos compreender as coisas sentimo-nos seguros”[12] e nesse caminho pouco a pouco a criança desvendará tudo que para ela era inquietante e assustador, afirmando-se e atingindo a sua “ataraxia”.
Segue-se dessa visão aparentemente “belicista” do desenvolvimento do individuo que a oposição entre este e o mundo substituiria o pressuposto essencialista da modernidade de que o homem se desenvolveria a partir de algo mais geral. Dessa maneira esse desenvolvimento deixaria de ser “determinado” para se tornar determinante de tudo que com ele entrasse em relação. Um exemplo: Enquanto utiliza a astúcia ou a teimosia na acentuação de seu sentimento de si a criança ainda não possuiria a capacidade de lidar com questões abstratas “Passam os mais belos anos da infância sem que precisemos nos debater com a razão”[13] Assevera Stirner e prossegue : “O rapazinho é capaz de compreender relações mas não idéias, o espírito; por isso acumula matéria aprendida (as datas da história por exemplo) sem recorrer a procedimentos aprioristicos e teóricos.”[14] Seguindo-se portanto que a determinação do mundo na infância estaria estreitamente vinculada ao realismo que Stirner supõe característico dessa fase, as coisas seriam “dadas” a partir dessa característica da relação entre o indivíduo e o mundo, e mudariam tão logo mudasse também o nexo relacional. E é o que ocorreria, segundo Stirner, quando na esteira dessa relação à criança tornar-se jovem, descobrindo o pensamento puro, abstrato e lógico e na base dessa descoberta afirmando-se sobre o poder do mundo concreto, como pensador e encontrando a sua ataraxia através da representação racional do mundo, realizando assim a descoberta de si, como puro espírito.
A partir desse ponto o mundo, como alteridade concreta, cairia em descrédito pois todas as relações com este passariam a ser submetidas verdade e ao conceito. O caráter ambíguo dessa descoberta de si representará na narrativa histórica do Único e sua propriedade a própria modernidade, que por um lado afirma a autonomia do homem e por outro lado preserva sua submissão através da universalidade atribuída aos conceitos. A superação dessa obsessão dependeria por sua vez do indivíduo adulto, que se coloca como o centro de tudo e para o qual a relação com o mundo não seria mais submetida a nada que lhe fosse estranho, como as idéias por exemplo, pois por trás destas ele teria realizado a segunda descoberta de si, como único. E quanto a velhice? Nesse ponto para reafirmar o caráter perspectivista e retórico de sua narrativa Stirner afirma jocosamente: “quando lá chegar terei ainda tempo de falar disso” [15].
Do exposto fica claro que a biografia do individuo oferecida por Stirner, bem como sua narrativa histórica situam o surgimento do pensamento teórico, em um momento contingente do processo existencial e histórico, fenômeno esse que por sua peculiar “mania da razão” tende a acarretar a “perda de si” ao negar-se a reconhecer o próprio interesse como imanente a própria atividade reflexiva que o quer negar. O educador possuído por tais princípios a perpetraria então uma continua cruzada para a conversão de indivíduos singulares e “radicalmente situados” em espíritos livres, ensinando segundo a máxima “não vives para ti, mas para o teu espírito e para o que é próprio dele, ou seja, as idéias”[16] Essa atitude substituiria as forças criativas por impulsos acumulativos e repetitivos, que estabeleceriam a relação dos educandos com os objetos a “verdade” ou a utilidade no sentido geral da palavra. A partir desse ponto a pratica pedagógica elaboraria-se sob o viés da negação dos instintos, da vontade, e contra essa pratica clerical instaurada no interior da pedagogia moderna Stirner indica a insuficiência de uma mera mudança de paradigma (como ainda hoje se discute nas academias) no campo das teorias. Como exemplo, Stirner citará a mudança do paradigma humanista para o paradigma realista, operada no século XIX, do qual Stirner criticará o feitio generalista “que tem por espírito fornecer ao homem a habilidade” sem dar o passo seguinte no processo de emancipação dos indivíduos, o que significaria enfatizar o desenvolvimento da capacidade de “tirar partido” ou de utilizar essas habilidades, tornando-as pessoais através da apropriação, pois “o saber que não se tornou pessoal prepara bem mal para a vida “[17]·.
Eminentemente existencialista em certo sentido e pragmática em outro, a retórica da pedagogia Stineriana dispõe-se a aceitar todas as conquistas históricas para o fazer pedagógico, desde que possam ser submetidas a realização do individuo “cessando de ser saber e se tornando um simples desejo instintivo do homem”[18]. Isso implica afirmar o abandono de toda sacralização da autoridade, seja na relação com o conhecimento chamando-o uma “verdade” de maneira grandiloqüente, seja na relação pessoal submetida a qualquer hierarquia. Nesse sentido as indicações de uma pedagogia Stineriana apontariam para uma abordagem relacional, na qual o modo de ensinar seria tão relevante quanto o conteúdo positivo do ensino, e onde este teria por ponto de partida e de chegada o desenvolvimento do sentimento de si e da vontade autônoma, a partir do encontro interessado entre o individuo e o mundo. Se a modernidade sacralizou a pratica docente como uma espécie de sacerdócio que visava promover a realização espiritual do educando, Stirner pretende pessoalizar a educação. Essa estratégia estaria vinculada a uma relação de afinidade entre a atitude geral diante da própria vida e a maneira de ensinar empregada pelo educador. Baseando-se na sinceridade e igualdade consigo, própria de quem está inteiro em cada ação, tal educador diante da “impertinência dos pequenos” ao invés da força impessoal da hierarquia oporia os próprios recursos pois: “muito fraco é aquele que precisa recorrer a autoridade e bem culpado aquele que crê corrigir o insolente fazendo-o tremer.”[19] Essa Abordagem “personalista” da educação nos leva repensar se o valor do egoísmo, anatematizado pelos educadores, não teria muito a acrescentar em autenticidade e dinamismo a pratica docente.
Por oposição a opção essencialista da modernidade de subordinar a vida dos indivíduos e a descrição de suas relações a uma ordem superior, Stirner coloca a biografia particular de cada um, a concretude de seus interesses e a contingência da própria singularidade, fundada somente sobre si própria. É essa vida que o termo único pretende expressar como “um nada criador através do qual tudo é criado” [20] que não pode ser abarcado por um conceito e cujo percurso existencial se elabora a partir de um movimento de contínua criação-destruição, um inacabamento contínuo no qual cada instante representa a diluição do instante passado e o estabelecimento de uma nova relação com o mundo, sua propriedade. A substituição de uma concepção determinada acerca do individuo por tal postura “anti-essencialista” e dinâmica conferiria a essa pedagogia stineriana o grande mérito de corresponder, como narrativa, aos anseios contemporâneos por equanimidade e liberalidade em uma sociedade democrática, defendendo a primazia da individualidade e conferindo um status privilegiado a questão da autonomia, que deixaria em aberto a possibilidade de eventuais contratos com outros individuos livres e autônomos. Além disso, ao oferecer o que em minha opinião seria uma interessante sugestão de uma atividade estetizante do indivíduo sobre si mesmo, a partir do seu trabalho sobre o mundo Stirner substituiria a idéia de “missão” ou “dever ser” herdadas do cristianismo e assumidas pela modernidade. Através da expressão espontânea das próprias forças, algo que sempre se realizaria de qualquer maneira, cada um se singularizaria, sem que isso implicasse em um novo mandamento pois “como as forças são autonomamente ativas a ordem de as usar seria desnecessária e absurda. Usar as suas forças não é uma missão, nem uma tarefa mas uma ação sempre real e sempre presente.”[21] Configurando-se numa contínua e permanente atividade auto-expressiva e auto-criativa, mesmo que o individuo disso se esqueça, fixando-se em algum produto estagnado de seu pensamento.
De tudo que foi exposto creio poder afirmar a relevância da perspectiva Stineriana em relação a pedagogia para além de qualquer disputa teórica, digamos, “substantiva”.Tanto em sua matriz política quanto existencial, tal abordagem me parece contemplar como já dito, por um lado o espírito liberal que advoga o fim das instancias de constrição alheias ao interesse dos indivíduos, e por outro, saturar esse espírito com um pathos romântico que permitira ao indivíduo a utilização das possibilidades criadas pela sociedade que surgiu na esteira da modernidade, de maneira própria e única, dissolvendo outras tantas instancias de constrição e lidando com todas elas no sentido de sua fruição, de seu gozo.


Referencias

O único e a sua propriedade, Max Stirner-Trad. João barrento. Ed. Antígona - Lisboa 2004
O falso Principio de nossa educação, Max Stirner, Ed imaginário. São Paulo - 2001
[1] O único e sua propriedade, pág. 25
2 O único e sua propriedade, pag. 25
[3] O único e sua propriedade, pag. 25
[4] O único e sua propriedade, pág.36
[5] O único e sua propriedade, Pág.58
[6] O único e sua propriedade, pag57
[7] O único e sua propriedade, pag.58
[8] O falso principio de nossa educação, pag. 68
[9] O único e sua propriedade pag.133
[10] O único e sua propriedade, pag.15
[11]O único e sua propriedade, pag.16
12 O único e sua propriedade, pag.15
[13]O único e sua propriedade, pag.16
[14]O único e sua propriedade, pag.16
[15]O único e sua propriedade, pag. 19
[16] O único e sua propriedade, pag. 32
[17] O falso principio de nossa educação, pag.75
[18]O falso principio de nossa educação, pag. 74
[19] O único e sua propriedade , 82
[20] O único e sua propriedade, pag.10
[21] O único e sua propriedade, pag. 256