quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Observações sobre orealismo pragmático de Habermas

O presente artigo pretende acompanhar o argumento exposto por Jürgen Habermas em seu texto “Comentários sobre verdade e justificação” com o propósito de confrontar a sua defesa do que ele denomina de um “realismo pragmático” com algumas objeções elencadas por autores como Richard Rorty, por exemplo. Como meta complementar também tentarei verificar o alcance de algumas asserções utilizadas por Habermas na defesa de sua pragmática Kantiana no sentido de sondar os limites de suas pretensões formalistas no interior de um quadro referencial “pragmatista”.
O texto de Jürgen Habermas “Comentários sobre verdade e justificação” apresenta-se como uma brilhante peça da produção filosófica contemporânea. Breve em sua extensão, esclarecedor e conciso no seu estilo, e, no entanto, denso no seu conteúdo. O desenvolvimento de seu discurso é norteado pela procura por uma instancia formal de verificação da verdade dos argumentos de participantes de um diálogo. Pretenderia ele assim estabelecer as bases de uma política democrática livre dos riscos de discursos distorcidos e “fascistas”. O núcleo do referido texto compõe-se de uma defesa do que seria um realismo sem representação(que lhe permitira esquivar-se de objeções feitas ao kantismo) e da possibilidade de conciliação dessa posição epistêmica com o construtivismo moral. Começando peça apresentação da tradição hermenêutica, cujo propósito central para Habermas seria a analise da função por meio da qual a linguagem revela o mundo, o filosofo alemão lateraliza a esta corrente a filosofia analítica. Nesta ultima Habermas identifica como principal preocupação a função representativa da linguagem, ou a relação entre sentença e fato. Segundo o ponto de vista desenvolvido no texto, ambas as correntes cometeriam “falácias abstrativas”[1] ao desconsiderar os aspectos pragmáticos do dialógo, ou seja, as características do ato comunicativo cuja semântica está vinculada a necessidade de resolver problemas de ordem pratica.
Dirigindo a Hermenêutica e a filosofia analítica a acusação de serem demasiado abstratas, me parece que Habermas opta por uma linha critica que de certa maneira antecipa suas pretensões de mostrar-se comprometido com o espírito anti-metafisico da pós-modernidade, o que, no caso de Habermas, não implica o abandono das pretensões de universalidade dessa mesma metafísica. A narrativa Habermasiana, todavia, ao contrario de outros sistemas críticos não se estabelecerá a partir da desqualificação dos sistemas aqui denunciados como muito “abstratos”. A categorização por ele utilizada cumpre, no meu entender, um papel acessório cujo propósito é inserir ambas as correntes filosóficas em uma descrição em camadas do ato comunicativo, ou, como ele mesmo fala referindo-se a Humboldt em “três níveis analiticos diferentes” . Esses níveis seriam ocupados pelas duas tradições supra citadas e pelo terceiro nível mediano no qual ele mesmo situa-se e que denomina de “pragmática formal” ou de “Pragmatismo kantiano”. Desse ponto intermediário Habermas irá posicionar-se no sentido de fornecer a sua versão do que seria uma epistemologia isenta dos vícios da Hermenêutica e da filosofia analítica.
No entender Habermasiano o contextualismo hermenêutico e a analise demasiado técnica da filosofia analítica se manteriam desvinculados da práxis, sendo essa a sua principal limitação. Ambas as tradições deixariam de dar conta da experiência de senso comum de supor a existência de um mundo real como fundamento necessário para nossas ações , embora tenham, a seu favor o fato de que são conseqüentes em relação a observação de que não temos acesso a realidade em si mesma. Segue-se dessa constatação que para Habermas a filosofia contemporânea deveria buscar a conciliação do realismo inserido no senso comum com uma atitude “Darwinista” sem adotar uma postura representacionista diante desse mundo supostamente o mesmo para todos nós. A tal posição filosófica Habermas denomina de “realismo Kantiano”. Para o filosofo a regularidade com a qual nos desincumbimos de nossas tarefas no dia-a-dia, bem como a necessidade de ter que lidar com problemas dos quais não podemos escapar seriam atestados da crença inescapável em um mundo que é o mesmo para todos nós. “O mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no mundo”[2]. Devo confessar que me parece pouco claro como Habermas deriva do fato de que todos somos convocados a ação através de situações que fogem a nosso controle, e de que supomos em nossa relação com o mundo algum tipo de regularidade, a afirmação de uma totalidade supostamente a mesma para todos nós. “Linguagens diferentes, pontos de vista diferentes, capazes, entretanto, de se referir as mesmas coisas”.[3] Os objetos aos quais estariam vinculadas as diversas praticas comunicativas seriam, portanto, os mesmos para todas as pessoas, embora elas utilizem palavras e valorações distintas. Esses objetos, entretanto, me parece que possuiriam um caráter meramente formal ou pré-reflexivo ou não poderiam ser dissociados dos pontos de vista das pessoas que com tais objetos se relacionam. Penso que uma das questões a serem colocadas a partir dessas afirmações seria a seguinte: É realmente possível separar os constrangimentos impostos pelo mundo, o problemático, do ambiente cultural e do quadro de referências valorativas no qual esses mesmos constrangimentos ocorrem? Ou colocando a questão em outros termos, o que é considerado relevantemente problemático a ponto de possibilitar uma inclinação ao consenso, não dependeria muito mais dos interesses determinados de antemão por pontos de vista diferentes do que por qualquer mundo não refletido e a priori?
Para Habermas, todavia, essas questões são resolvidas através da necessidade de convergência buscada pelos indivíduos ao enfrentarem problemas práticos. O mundo não refletido das nossas ações seria não só a condição de possibilidade para a ação como também para o entendimento representando um ultrapasssamento de uma concepção falibilista de verdade como justificação. “Para dirigir um carro ou atravessar uma ponte, não partimos de uma atitude hipotética refletindo a cada passo sobre o know-how tecnológico ou estatístico dos projetistas”.[4] A confiança que cristaliza nossos hábitos e certezas possibilitando uma ação não refletida seria o modelo Habermasiano de uma verdade sem representação. Mas é mesmo possível atribuir ao senso comum e a confiança na estabilidade de nossas relações com o mundo o estatuto de algo “incondicionalmente verdadeiro”[5] Creio que dificilmente alguém que todos os dias atravessa a mesma ponte afirmaria ter certeza incondicional acerca da segurança da mesma se interrogado sobre a possibilidade de uma acidente. Provavelmente a resposta sobre essa questão seria “Não tenho motivos até aqui para duvidar de que seja segura”. O que reconduziria ao falibilismo e ao falsificacionismo a aparente certeza inserida no senso comum.
Todavia, é inegável que a hipótese Habermasiana possui um forte apelo a intuição cotidiana que nos leva a equiparar os termos “confiança” a “verdade”. Em ultima instância é de fato a segurança “incondicional” que os homens aspiram quando buscam a verdade. Mas essa intuição não me parece sólida o bastante para afirmar a correspondência entre os dois termos. Verdade seria de qualquer maneira uma expectativa ideal de segurança. Ademais, mesmo que de fato o senso comum suponha qualquer estabilidade em relação a nossas idéias que dizem respeito ao mundo e(pelo fato de se terem tornado confiáveis) pretendamos universalizá-las, essa suposição não é garantia de consenso. Também é um fato facilmente observável que qualquer conjuntos de idéias e praticas religiosas ou culturais que ofereça para seus usuários os resultados por eles desejados poderiam ser universalizáveis seguindo o mesmo critério sem, todavia, levar ao consenso na maioria das vezes. A opção Rortyana me parece mais eficaz, pois segundo o filosofo americano deveríamos recorrer diretamente aos interesses e sentimentos das pessoas, a imaginação como recurso para a construção do consenso ao invés da demanda por uma instância a priori de fundamentação dos discursos (ainda que naturalizada e “pós-moderna”).
A argumentação Habermasiana gira em torno da busca por condições universais que tornariam possíveis as práticas comunicativas. Essa demanda deriva de seu desejo de estabelecer as bases da cooperação e da justiça em uma sociedade democrática. Caberia para o filosofo e para a filosofia um lugar privilegiado enquanto interprete da “verdadeira” natureza dos discursos, pois somente recorrendo aos fundamentos de nossas praticas comunicativas poderíamos refutar discursos totalitários e unilaterais. Refutar “teoricamente” o relativismo constitui-se, portanto, em um projeto político, cuja principal aspiração é colocar a segurança e a verdade no lugar da experimentação e da arte. Em Richard Rorty, Habermas encontrou um dos mais recentes defensores do Relativismo e do consensualismo como fundamentais para a política democrática. Para Rorty as refutações teóricas elencadas por Habermas ao relativismo, bem como a sua defesa de um realismo sem representação não são tão importantes quanto a verificação da possível relevância e da funcionalidade de uma teoria da verdade para o propósito de realizar o ideal de uma sociedade includente. Todavia, a rejeição por ambos os autores de formas de discurso que possam ocasionar o fracasso dos ideais cosmopolitas e democratas, tornam tais diferenças muito pequenas no campo da ação. A opção Habermasiana serviria, sobretudo, como opção retórica para aqueles que ainda estão inclinados a buscar em “fundamentos” ,no sentido forte da palavra, a sanção para suas esperanças.

Bibliografia

-A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen. Trad. Marcello Brandão Cipolla.Ed. Martins Fontes SP 2007
-Filosofia Racionalidade e Democracia (a inserir demais Dados)
[1] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 52.
[2] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 58.
[3] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 58.
[4] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág 62.
[5] A ética da discussão e a questão da verdade, Habermas, Jürgen pág. 61

Max Stirner e a pedagogia Moderna

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O problema da relação entre o individuo e o mundo e do papel mediador da consciência no interior dessa relação caracteriza um dos núcleos temáticos considerados mais relevantes para a filosofia moderna. As repercussões das abordagens filosóficas a essa e outras questões que dela derivam orientaram muitas teses em áreas bem diversas da atividade humana como direito, política e pedagogia. Com o propósito de realizar uma abordagem da critica do filósofo alemão Max Stirner à pedagogia moderna, iremos acompanhar o questionamento que ele desenvolve dos pressupostos generalizantes e formalistas desse campo de atividade, pressupostos estes alinhados com a tendência histórica que ele denomina “a ascensão do espírito”. Segundo o mesmo, essa tendência caracterizaria-se por um contínuo processo de espiritualização da realidade, que se consuma na modernidade e nas suas concepções sobre o homem como “ser genérico” e racional e da educação como atividade que visaria levar a realização dos ideais de igualdade e liberdade na sociedade através do desenvolvimento de potências supostamente intrínsecas aos indivíduos. Nossa abordagem, todavia, não pretende confrontar as teses do autor com os conteúdos positivos das diversas teorias existentes hoje no campo da pedagogia, mas apenas indicar a posição de Stirner com relação tendências comuns aos pressupostos filosóficos dessas mesmas teorias e, principalmente, desenvolver a sua defesa do desenvolvimento da autonomia como fundamental para o sucesso da atividade pedagógica.
Para a tradição filosófica que começou com Platão, conhecer seria a principal atividade da vida dos indivíduos, uma atividade que constituiria a própria essência destes, e de cujo modo de efetivação o seu valor dependeria. Desde o principio essa concepção esteve associada a uma duplicação do mundo em um mundo aparente e um mundo real, separação essa que situava a consciência humana entre os dois incumbindo-lhe a missão de passar da aparência ao real, da opinião ao ser. Essa atitude caracteristicamente essencialista teria como conseqüência a determinação da natureza dos indivíduos em sua essência a partir da relação entre os pensamentos ou proposições destes e a sua verdade, o que os definiria como pessoas cultas ou incultas, sábias ou ignorantes,conscientes ou alienadas. No período histórico que conhecemos sob o nome de modernidade essa determinação da realidade a partir da relação entre o fenômeno considerado e uma instancia superior será de fundamental importância. É na base da busca de legitimidade das instituições diante das exigências razão humana, que o movimento de liberação promovido pela burguesia do século XVIII consumará o processo de racionalização da realidade iniciado com Sócrates e Platão e popularizado pelo cristianismo. Tal processo, por sua vez, conduzirá a emancipação da sociedade em relação as arbitrariedades da religião, e do conhecimento em relação aos dogmas do clero. Em contrapartida, esse mesmo movimento será responsável pela instauração da racionalidade como a legisladora, que passará a submeter ao seu crivo todas as relações entre os homens.
Como conseqüência de tal racionalização às pessoas passariam a considerar o pensamento, ou a razão, como fatores decisivos para a emancipação de potencias arbitrarias como a religião e a monarquia, mas outro lado, as idéias, ou o espírito, tornar-se-iam o aspecto mais venerável da existência, consumando-se como essência dos indivíduos e do mundo. “Por isso é que Descartes, para quem isso finalmente se tornou claro, pôde construir a proposição: penso, logo existo” [1] Assinala Stirner, e conclui que, portanto: “Só vivo quando vivo espiritualmente, só sou real como espírito” [2] Na mesma direção a moral, antes vinculada a religiosidade, se subjetivaria, tornando-se uma “força interior” como autodeterminação segundo a lei, como por exemplo, no imperativo categórico Kantiano, o que resultaria na negação de si, enquanto individuo singular através da afirmação de uma “lei geral”, ou seja, um de novo senhor.
Essa seria a espiritualização do mundo, a ascensão do espírito levada a efeito pela modernidade, um movimento que, segundo Stirner, tem como conseqüência o ônus da obsessão pelas idéias e pelo pensamento “que não conhece nem reconhece nada que não seja espírito” [3] e que acarreta a sacralização do pensamento, como se este não fosse apenas uma coisa entre outras coisas, mas “pelo contrário, o que há de mais real, o mais verdadeiramente verdadeiro do mundo”. [4] Estabeleceria-se assim uma divisão que torna apenas “aparência” o que antes era o próprio mundo, enquanto os predicados se substancializam, tornando-se dessa forma “essências”, ou aquilo que seria de fato existente. Esse movimento de espiritualização do mundo tem por expressão política o que Stirner denomina as hierarquias que nada mais são que as escalas valorativas na base das quais aqueles que se apóiam nos pensamentos exercem seu poder, submetendo o valor atribuído a atividade dos indivíduos ao crivo dos pensamentos, separando as pessoas em cultas e incultas, altruístas e egoístas. Caberia então ao educador imbuído de tais convicções tentar exercer uma atividade coercitiva do pensamento sobre a natureza, procurando despertar nos alunos sua vocação humana, “melhorando” a sua índole, “desenvolvendo sua razão” e tentando sufocar todo interesse pessoal, todo egoísmo, através da imposição de conhecimentos e valores. Como fardos, esses conteúdos pesarão sob o indivíduo e impedirão qualquer manifestação própria, qualquer atitude de ironia ou desdém, em relação a tais questões serias e sagradas, ou sentimentos absolutos. “Quem é que de forma mais ou menos consciente nunca reparou que toda nossa educação está voltada para produzir em nós sentimentos, ou seja, de os impor, em vez de nos deixar a iniciativa de os produzir, quaisquer que eles sejam?”[5] Essa determinação tornaria toda pedagogia o que Stirner denomina uma “pastoral das almas”, uma cruzada permanente pela supressão da singularidade dos indivíduos através da interiorização de sentimentos e noções absolutas “Deus, a imortalidade, a liberdade o humanitarismo como idéias e sentimentos que mais forte ou mais leve atingem a nossa interioridade”[6] sufocando a sadia tendência a oposição, através da “afinação com o que os outros acham correto.”[7]
Como se pode observar a pedagogia de caráter iluminista sob o viés Stineriano apresenta-se como uma atividade de coerção voltada para a constrição da vontade individual e livre, através do recuso da atribuição de auto-subsistência e universalidade as idéias, como método persuasivo. Tentando libertar os homens de sua determinação natural, tida como temerosamente afetiva, e dotando-os apenas de noções que visariam realizá-los como espíritos livres, os educadores não desenvolveriam nos alunos as potências volitivas que permitiriam a utilização dessas mesmas noções para a realização pessoal, segundo os interesses característicos de cada indivíduo. Uma das causas da limitação de tal pedagogia, segundo Stirner, estaria em seu permanente impulso para a liberdade, que tomaria por liberdade, no entanto, apenas “a liberdade em relação a pessoas”, “arbitrariedades” e ao instinto sem dar a relevância devida à questão da “autodeterminação” que permitira “A ação em que o individuo livre em si se reconhece, em que se manifesta um espírito resolutamente voltado para a ação, quer dizer, livre das flutuações da reflexão”[8] ou seja, livre da necessidade da sanção oferecida pela razão, pela verdade, em síntese: pelo absoluto. A sutileza de tal abordagem, que ultrapassa o relativismo teórico, está em trazer à baila a problemática da “liberdade”, fundamental para o desenvolvimento do pensamento filosófico ligado a educação, sob o enfoque da “relação” no interior da qual a questão da liberdade é colocada. Considerada sob esse viés a liberdade seria uma noção apenas negativa, sem conteúdo, que nada diria sobre o que fazer após sua aquisição. Segundo Stirner essa liberdade poderia ser pensada de duas maneiras: como liberdade total, e dessa maneira irrealizável, ou como uma liberdade “determinada”, que terminaria estabelecendo uma nova dominação. A liberdade oferecida ou legitimada pelo pensamento liberal moderno é do primeiro tipo. Ela situa-se no interior da relação de afirmação da “ordem racional” dos valores modernos, agora “sagrados”, diante da ordem contingente da arbitrariedade do costume, dos instintos e da religião. Esta “liberdade determinada” não ofereceria, segundo Stirner, nenhum espaço para a auto-determinação, constituindo apenas uma meta parcial no processo de emancipação do individuo, cuja dinâmica cria sempre novas liberdades, se preciso em relação a própria razão, rejeitando portanto o feitio tutelar da pedagogia que pretende “ensinar” como tornar-se “livre”.
Para Stirner liberdade seria, sobretudo, auto-libertação, apropriação e anulação da aura de poder e sacralidade que reveste muitas das coisas que vem ao encontro do homem. Essa potência estaria submetida a relação de afirmação e gozo entre as pessoas e o mundo que as cerca. Não somente a liberdade, portanto, mas antes de tudo a afirmação de si ou o egoísmo seriam os pontos centrais da educação. “a liberdade apela contra tudo que não sois, o egoísmo apela para o jubilo de serdes vós proprios”[9] Então já não falaríamos em liberdade somente, pois estaríamos afirmando algo de positivo, a singularidade própria, que aceita a redução da liberdade quando isso implica a satisfação de um interesse, mas que se desfaz e rejeita de tudo que lhe é estranho. Esta é a pedra angular da auto-realização sobre a qual Stirner acredita que a pedagogia deveria se desenvolver, pois permitiria a utilização de todos os conteúdos transmitidos pelo educador de maneira totalmente pessoal, ultrapassando as pretensões racionalistas da modernidade.
Todavia, não é sob a alegação da falsidade ou da inverdade dessas pretensões da modernidade que se desenvolverá a crítica Stineriana, nem é com um recurso a fundamentos que ele irá desenvolver a sua defesa da “autonomia da vontade”. Contornando a acusação de auto-contradição que comumente costuma pesar sobre anti-essencialistas que denunciam os exageros da razão, Stirner apontará para as pretensões liberalizantes e emancipacionistas da própria filosofia moderna no sentido de opô-las as tendências religiosas dessas mesmas correntes de pensamento, assumindo desde o inicio o caráter pessoal de sua retórica. Vimos que a narrativa da modernidade identificava o desenvolvimento do homem com o desenvolvimento da razão, do espírito, e que essa concepção representava a conquista de uma certa autonomia em relação ás potencias arbitrarias da natureza e da religião. Todavia, o mesmo movimento também trazia consigo o risco da instituição de uma nova instancia de opressão, ainda mais poderosa, porque impessoal e sagrada, ou seja, a razão. O discurso stineriano se direcionará à esse mesmo anseio por emancipação e afirmação de si característico da modernidade, aspiração que ele denomina no texto O falso principio de nossa educação de “espírito de nosso tempo”. Conquanto a expressão “espírito” tenha outras conotações na obra de Max Stirner, aqui esse termo que deve ser entendido no sentido de uma inclinação ou direção comum a diversas idéias, praticas e sentimentos de seu tempo. Utilizando-se dessa hipotética “tendência” liberalizante, Stirner denúncia como entraves para a consumação da mesma o apego a herança cristã de nosso passado e o espírito reformista da própria modernidade, na base dos quais, no entanto, encontram-se adormecidas as potencias volitivas e instintivas dos indivíduos, sendo exatamente a esses “interesses” voltada a critica Stineriana, o que coloca a critica teórica no mesmo nível de qualquer atitude de refutação.
Colocando-se de maneira eminente historicista e re-situando a atitude essencialista a partir dessa “atmosfera” Stirner irá desenvolver a sua narrativa de “uma vida humana” no seu livro principal, O único e sua propriedade. Neste, será a oposição entre o individuo e o mundo, a partir do momento em que neste se vê lançado “sem orientação”, que constituirá a mola do desenvolvimento do individuo, de maneira que a partir de seu nascimento: “tudo aquilo com o que a criança entra em contato se rebela contra as suas intervenções e afirma a sua própria existência”[10] sendo a luta por afirmação por parte de ambos inevitável, só restaria a cada um tentar superar o outro através dos recursos a sua disposição e dessa forma: “na infância a libertação seguiria mais ou menos por este caminho: queremos descobrir a razão de ser das coisas, ou o que se esconde por trás delas.”[11] O que decorreria dessa descoberta ou desse “desencantamento” daquilo que antes exercia tanto poder e temor sobre o infante seria a acentuação do sentimento de si pois “quando julgamos compreender as coisas sentimo-nos seguros”[12] e nesse caminho pouco a pouco a criança desvendará tudo que para ela era inquietante e assustador, afirmando-se e atingindo a sua “ataraxia”.
Segue-se dessa visão aparentemente “belicista” do desenvolvimento do individuo que a oposição entre este e o mundo substituiria o pressuposto essencialista da modernidade de que o homem se desenvolveria a partir de algo mais geral. Dessa maneira esse desenvolvimento deixaria de ser “determinado” para se tornar determinante de tudo que com ele entrasse em relação. Um exemplo: Enquanto utiliza a astúcia ou a teimosia na acentuação de seu sentimento de si a criança ainda não possuiria a capacidade de lidar com questões abstratas “Passam os mais belos anos da infância sem que precisemos nos debater com a razão”[13] Assevera Stirner e prossegue : “O rapazinho é capaz de compreender relações mas não idéias, o espírito; por isso acumula matéria aprendida (as datas da história por exemplo) sem recorrer a procedimentos aprioristicos e teóricos.”[14] Seguindo-se portanto que a determinação do mundo na infância estaria estreitamente vinculada ao realismo que Stirner supõe característico dessa fase, as coisas seriam “dadas” a partir dessa característica da relação entre o indivíduo e o mundo, e mudariam tão logo mudasse também o nexo relacional. E é o que ocorreria, segundo Stirner, quando na esteira dessa relação à criança tornar-se jovem, descobrindo o pensamento puro, abstrato e lógico e na base dessa descoberta afirmando-se sobre o poder do mundo concreto, como pensador e encontrando a sua ataraxia através da representação racional do mundo, realizando assim a descoberta de si, como puro espírito.
A partir desse ponto o mundo, como alteridade concreta, cairia em descrédito pois todas as relações com este passariam a ser submetidas verdade e ao conceito. O caráter ambíguo dessa descoberta de si representará na narrativa histórica do Único e sua propriedade a própria modernidade, que por um lado afirma a autonomia do homem e por outro lado preserva sua submissão através da universalidade atribuída aos conceitos. A superação dessa obsessão dependeria por sua vez do indivíduo adulto, que se coloca como o centro de tudo e para o qual a relação com o mundo não seria mais submetida a nada que lhe fosse estranho, como as idéias por exemplo, pois por trás destas ele teria realizado a segunda descoberta de si, como único. E quanto a velhice? Nesse ponto para reafirmar o caráter perspectivista e retórico de sua narrativa Stirner afirma jocosamente: “quando lá chegar terei ainda tempo de falar disso” [15].
Do exposto fica claro que a biografia do individuo oferecida por Stirner, bem como sua narrativa histórica situam o surgimento do pensamento teórico, em um momento contingente do processo existencial e histórico, fenômeno esse que por sua peculiar “mania da razão” tende a acarretar a “perda de si” ao negar-se a reconhecer o próprio interesse como imanente a própria atividade reflexiva que o quer negar. O educador possuído por tais princípios a perpetraria então uma continua cruzada para a conversão de indivíduos singulares e “radicalmente situados” em espíritos livres, ensinando segundo a máxima “não vives para ti, mas para o teu espírito e para o que é próprio dele, ou seja, as idéias”[16] Essa atitude substituiria as forças criativas por impulsos acumulativos e repetitivos, que estabeleceriam a relação dos educandos com os objetos a “verdade” ou a utilidade no sentido geral da palavra. A partir desse ponto a pratica pedagógica elaboraria-se sob o viés da negação dos instintos, da vontade, e contra essa pratica clerical instaurada no interior da pedagogia moderna Stirner indica a insuficiência de uma mera mudança de paradigma (como ainda hoje se discute nas academias) no campo das teorias. Como exemplo, Stirner citará a mudança do paradigma humanista para o paradigma realista, operada no século XIX, do qual Stirner criticará o feitio generalista “que tem por espírito fornecer ao homem a habilidade” sem dar o passo seguinte no processo de emancipação dos indivíduos, o que significaria enfatizar o desenvolvimento da capacidade de “tirar partido” ou de utilizar essas habilidades, tornando-as pessoais através da apropriação, pois “o saber que não se tornou pessoal prepara bem mal para a vida “[17]·.
Eminentemente existencialista em certo sentido e pragmática em outro, a retórica da pedagogia Stineriana dispõe-se a aceitar todas as conquistas históricas para o fazer pedagógico, desde que possam ser submetidas a realização do individuo “cessando de ser saber e se tornando um simples desejo instintivo do homem”[18]. Isso implica afirmar o abandono de toda sacralização da autoridade, seja na relação com o conhecimento chamando-o uma “verdade” de maneira grandiloqüente, seja na relação pessoal submetida a qualquer hierarquia. Nesse sentido as indicações de uma pedagogia Stineriana apontariam para uma abordagem relacional, na qual o modo de ensinar seria tão relevante quanto o conteúdo positivo do ensino, e onde este teria por ponto de partida e de chegada o desenvolvimento do sentimento de si e da vontade autônoma, a partir do encontro interessado entre o individuo e o mundo. Se a modernidade sacralizou a pratica docente como uma espécie de sacerdócio que visava promover a realização espiritual do educando, Stirner pretende pessoalizar a educação. Essa estratégia estaria vinculada a uma relação de afinidade entre a atitude geral diante da própria vida e a maneira de ensinar empregada pelo educador. Baseando-se na sinceridade e igualdade consigo, própria de quem está inteiro em cada ação, tal educador diante da “impertinência dos pequenos” ao invés da força impessoal da hierarquia oporia os próprios recursos pois: “muito fraco é aquele que precisa recorrer a autoridade e bem culpado aquele que crê corrigir o insolente fazendo-o tremer.”[19] Essa Abordagem “personalista” da educação nos leva repensar se o valor do egoísmo, anatematizado pelos educadores, não teria muito a acrescentar em autenticidade e dinamismo a pratica docente.
Por oposição a opção essencialista da modernidade de subordinar a vida dos indivíduos e a descrição de suas relações a uma ordem superior, Stirner coloca a biografia particular de cada um, a concretude de seus interesses e a contingência da própria singularidade, fundada somente sobre si própria. É essa vida que o termo único pretende expressar como “um nada criador através do qual tudo é criado” [20] que não pode ser abarcado por um conceito e cujo percurso existencial se elabora a partir de um movimento de contínua criação-destruição, um inacabamento contínuo no qual cada instante representa a diluição do instante passado e o estabelecimento de uma nova relação com o mundo, sua propriedade. A substituição de uma concepção determinada acerca do individuo por tal postura “anti-essencialista” e dinâmica conferiria a essa pedagogia stineriana o grande mérito de corresponder, como narrativa, aos anseios contemporâneos por equanimidade e liberalidade em uma sociedade democrática, defendendo a primazia da individualidade e conferindo um status privilegiado a questão da autonomia, que deixaria em aberto a possibilidade de eventuais contratos com outros individuos livres e autônomos. Além disso, ao oferecer o que em minha opinião seria uma interessante sugestão de uma atividade estetizante do indivíduo sobre si mesmo, a partir do seu trabalho sobre o mundo Stirner substituiria a idéia de “missão” ou “dever ser” herdadas do cristianismo e assumidas pela modernidade. Através da expressão espontânea das próprias forças, algo que sempre se realizaria de qualquer maneira, cada um se singularizaria, sem que isso implicasse em um novo mandamento pois “como as forças são autonomamente ativas a ordem de as usar seria desnecessária e absurda. Usar as suas forças não é uma missão, nem uma tarefa mas uma ação sempre real e sempre presente.”[21] Configurando-se numa contínua e permanente atividade auto-expressiva e auto-criativa, mesmo que o individuo disso se esqueça, fixando-se em algum produto estagnado de seu pensamento.
De tudo que foi exposto creio poder afirmar a relevância da perspectiva Stineriana em relação a pedagogia para além de qualquer disputa teórica, digamos, “substantiva”.Tanto em sua matriz política quanto existencial, tal abordagem me parece contemplar como já dito, por um lado o espírito liberal que advoga o fim das instancias de constrição alheias ao interesse dos indivíduos, e por outro, saturar esse espírito com um pathos romântico que permitira ao indivíduo a utilização das possibilidades criadas pela sociedade que surgiu na esteira da modernidade, de maneira própria e única, dissolvendo outras tantas instancias de constrição e lidando com todas elas no sentido de sua fruição, de seu gozo.


Referencias

O único e a sua propriedade, Max Stirner-Trad. João barrento. Ed. Antígona - Lisboa 2004
O falso Principio de nossa educação, Max Stirner, Ed imaginário. São Paulo - 2001
[1] O único e sua propriedade, pág. 25
2 O único e sua propriedade, pag. 25
[3] O único e sua propriedade, pag. 25
[4] O único e sua propriedade, pág.36
[5] O único e sua propriedade, Pág.58
[6] O único e sua propriedade, pag57
[7] O único e sua propriedade, pag.58
[8] O falso principio de nossa educação, pag. 68
[9] O único e sua propriedade pag.133
[10] O único e sua propriedade, pag.15
[11]O único e sua propriedade, pag.16
12 O único e sua propriedade, pag.15
[13]O único e sua propriedade, pag.16
[14]O único e sua propriedade, pag.16
[15]O único e sua propriedade, pag. 19
[16] O único e sua propriedade, pag. 32
[17] O falso principio de nossa educação, pag.75
[18]O falso principio de nossa educação, pag. 74
[19] O único e sua propriedade , 82
[20] O único e sua propriedade, pag.10
[21] O único e sua propriedade, pag. 256