sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Esboço de uma superação do Dualismo em Platão



O presente trabalho pretende conduzir a uma reflexão a cerca da possibilidade de uma leitura não dualista da obra de Platão. Tal proposta extrai a sua relevância do estigma projetado sobre a obra do filósofo pelo advento da tradição metafísica ocidental. Obviamente não é possível negar a presença na obra do autor de elementos que podem conduzir a visualização de um dualismo quase maniqueísta, mas é nocivo crer que tal dualismo seja uma característica necessária ou mesmo preponderante no pensamento platônico. Para tentar fornecer o que seria o esboço de uma interpretação que tenta superar tal tendência fornecendo uma leitura na qual o dualismo da obra platônica figura apenas como elemento retórico, tomarei o discurso de diotima no diálogo “O Banquete” como um exemplo de argumentação que aponta para uma concepção que supera o dualismo.
A filosofia de Platão constitui em si mesmo uma admirável caleidoscópio de teses que vão em múltiplos sentidos nem por isso pode-se afirmar que sua filosofia constitui um caos desordenado de teses contraditórias Um liame intencional perpassa toda a sua obra conferindo-lhe unidade. Desde a estrutura do dialogo aberto, onde os participantes expõem seus pontos de vista unidos por um laço fraterno até a contemplação privada do belo e do bem, é o Eros que possibilita os mais relevantes aspectos de sua filosofia. Superando as preocupações pré-socráticas com a origem do mundo fenomênico, Platão busca o lugar da alma humana na ordem geral do cosmos. No Banquete, coincidência ou não um dos mais belos diálogos de Platão o amor é tematizado por diversos interlocutores figurando na maioria deles como a divindade primordial situada na própria origem do cosmos. Contudo é no discurso de Diotima que Eros afigura-se não só como uma força motriz da geração e corrupção, mas principalmente como o Daimon responsável pela união das diversas esferas.
Nesta rica exposição na qual assistimos Sócrates aprender de uma estrangeira da Mantineia os segredos do amor, encontramos uma imagem deste muito diferente da oferecida pelos outros interlocutores: “um grande daimon, Sócrates (...) situa-se entre o mortal e o imortal.”(Platão,o banquete pág. 74) Entre esses dois extremos, liga-os preenchendo o espaço entre eles mantendo o todo coeso e facultando a relação entre as diversas esferas do real. O amor permite a união de um diferente ao outro, não como uma relação física entre dois corpos que permanecem separados conquanto se toquem mas antes fazendo-os participar um do outro. E realizando respectivamente seus desejos no seio da totalidade.
No aspecto do conhecimento existe uma compreensão proporcionada pelo Eros, não a da ordem do discurso, mas sim uma pré-compreensão de ordem afetiva que faz o amante participar em parte daquilo que almeja conhecer e comungar por inteiro. O dualismo na obra de Platão tornado tão relevante para a metafísica ocidental parece perder sua força na medida em que esboça-se o papel do Eros na compreensão da relação entre as diversas instâncias do real. A função desse grande espírito pode ser melhor compreendida através do mito fornecido por Diotima. No dia do banquete em homenagem ao nascimento de Afrodite filho de Penúria e de Engenho ele assim teria nascido: “Um eterno mendigo (...) aturado poeirento, descalço dormindo ao relento na poeira dos caminhos” (Platão, O Banquete pág.75).
E ao mesmo tempo:
“Vive espreitando o que é belo e bom por que é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso passando a vida a filosofar, um mago extraordinário, um verdadeiro sofista.”(Platão,o banquete. pag75

Em perpetua metamorfose e oscilação entre a geração e a corrupção, disposto a tudo arriscar pelo alvo de seus desejos, carente do néctar insubstituível que é o bom e o belo, sempre a meio caminho da realização de qualquer uma de suas possibilidades a figuração desse espírito é o retrato da condição humana.
Esse mesmo estado de carência do amor é também a causa do percurso em direção ao infinito, no qual todos os objetos de momentânea satisfação precisam ser superados, o que ocasiona um constante ultrapassamento de si mesmo uma vez que da natureza do objeto amado depreende-se a natureza do indivíduo amante. O risco sempre presente durante essa grande jornada é deter-se a uma das metas situadas a meio caminho entre o finito e o infinito e tal qual os marinheiros de Odisseu dormir ao provar do loto dos prazeres sensíveis esquecendo-se da natureza de sua jornada, condenando a tão sonhada comunhão com o bem dos bens, a sua “Ítaca” eterna.Aqui compreende-se que essa mesma jornada é o fluxo composto de inspiração e expiração reter o fluxo é cortar o liame com a vida , o desejo acometido da cegueira que não se submete as injuções da razão,torna-se incontinente e apegado,deixando-se arrastar até tornar-se um escravo de um tipo inferior de satisfação, condenando a sua realização . Nessa medida o mundo sensível é uma instância primária, um degrau, para o mundo inteligível das formas e o amor pelos corpos e pelos objetos o primeiro passo na demanda para o amor as formas puras que conferem beleza a tais corpos. Ao contrário do que se costuma afirmar vemos aqui o mundo da geração e da corrupção não como mera negatividade mais sim como ponto de partida para um bem maior.
A realidade em sua totalidade constitui-se de uma tensão uma mobilidade entre ser e não ser atingir e ultrapassar deter-se em qualquer dos dois pólos desse movimento eterno é ignorar a natureza da totalidade mutilando-a. O papel do diálogo insere-se nessa perspectiva e muito mais do que estabelecer teses ou certezas consumadas como alguns afirmam ser a tarefa da filosofia, pretende ser uma iniciação, um trabalho sobre si para forjar-se como um amante do conhecimento mesmo sem tê-lo ainda possuído, ou melhor, justamente por isso. Afirma José Américo Mota Peçanha: “Logos e Eros são inseparáveis” O discurso sempre ultrapassa teses particulares quando os interlocutores motivados pelo amor a verdade estão sempre dispostos a colocar sob dúvida os seus pontos de vista, a dualidade aparente entre uma tese e outra é superada pelo Eros que motiva o dialogo e nele se encarna, a dualidade aparente entre sensível e inteligível é superada pelo amor que abarca o real em sua multiplicidade conferindo-lhe sentido.
Subir, elevar-se, superar-se não seriam então meros anseios acidentais advindos de algum capricho cego e instintivo mais antes a volição mais fundamental da alma. A aspiração por aquilo cujo pressentimento anuncia uma pré-compreensão ou uma memória esvaecida que deseja vir a tona tornando-se clara visão. Tal memória assemelha-se a gestação de uma estrela inquieta que é o fruto sonhado de nós mesmos, isso também caracteriza o Phatos do amor em Platão. A busca do belo como ocasião para geração de si mesmo, ou seja, a participação na imortalidade divina, auto-transcendência aqui não se constitui como uma violência reativa sobre si mesmo, mas sim como a busca de satisfação, da mais alta aspiração humana, o único gesto que pode realizar cada aspecto humano de acordo com sua justa reivindicação.
A ânsia pela imortalidade perpassa todos os níveis da realidade e cada um deles procura consumar tal propósito de acordo com a natureza que lhe é peculiar. O desejo de felicidade prometido pelo alvo da aspiração humana reivindica eternidade e a disposição incomum de sacrificar uma expressão relativa e limitada da satisfação desse anseio em função de um gozo maior e mais alto através de uma manifestação mais pura. Os pais morrem se preciso por seus filhos, vêem neles sua participação na imortalidade. Essa é a única realização possível aos animais. Ao homem, todavia está reservada uma tarefa de muito mais ampla magnitude, como filósofo ele deve ultrapassar o apreço aos objetos e aos corpos na demanda em direção ao amor em si mesmo, o sacrifício de afastar-se do prazer efêmero que tais objetos podem proporcionar não se compara a alegria que mesmo a simples esperança de contemplar o bem dos bens proporciona. Sacrifício aqui não indica ação desagradável imposta sobre si mesmo, mas antes o gesto supremo de fazer o sagrado (sacrum-facere).
A dualidade na obra de Platão se tomada a partir de tal exposição pode ser considerada apenas um elemento retórico ou até epistémico, aspectos cuja relevância devem-se em grande medida a nossa própria pretensão a cerca da tarefa e da natureza do exercício filosófico. Ele mesmo afirmou existirem diversas maneiras de comunicar afinidade com os diversos temas que se comunica, metáforas, analogias, números e etc. A obra de Platão visa a totalidade da existência e para a compreensão de sua filosofia é indispensável analisá-la a luz de tal expectativa. Somente a compreensão do lugar do homem no cosmos lhe permite traçar o esboço de nossa natureza e do caminho para realização de suas possibilidades, o amor é o fio de Ariadne que possibilita ao homem a superação das dualidades e também a força responsável pelo seu apego e queda, ele é o tema principal do diálogo e a própria essência deste.
Da multiplicidade fenomênica a unidade da essência pura onde o verdadeiro regogizo enche de júbilo o filósofo, a alma traça seu caminho, superando as diversas etapas, norteada pela clara luz da razão e movido pelo amor ao belo. Somente aos “prenhes segundo a alma”(Platão,o banquete.pag 76) está reservada a realização da imortalidade latente em todo o homem. A inefabilidade perpassa todos os momentos desse progresso: Do pressentimento ilustrado pela prenhez que desconhece seu rebento até a contemplação beatífica há uma compreensão que resiste a uma transmissão conceitual inequívoca, no entanto tal compreensão é causa e objetivo do raciocínio conceitual. No limiar do templo deve silenciar o discurso acerca da natureza desse bem em si mesmo. Cumpre evitar a Hibris de querer traduzi-lo por palavras, assim é a iniciação. Somente os iniciados, os que seguiram os passos apontados pela sacerdotiza podem atingir o ponto onde cessam as palavras por cessarem as dualidades.




Bibliografia


-Platão ,um banquete( trad.Jaime Bruna,ed Cultrix.Paulo 1985)


- José Américo Mota Peçanha as diversas faces do amor em Platão,A
oferta do mel

- Victor Goldchmidt A Religião de Platão(trad. Ieda e Oswaldo Porchat.
edt D.E.L.S.Paulo )

Ética e individualidade- Do Romantismo de Dostoievski ao pragmatismo de Richard Rorty

Hilton Leal

O presente artigo pretende abordar alguns aspectos da crítica da modernidade que o escritor Russo Fiodor Dostoievski desenvolve, de forma literária, no livro memórias do subsolo. Tal abordagem pretende comparar alguns pressupostos dessa critica àquela que o filósofo norte americano Richard Rorty direciona para o mesmo alvo em diversos pontos da sua obra. Esta abordagem não pretende atribuir a Dostoievski uma posição filosófica definida, e tampouco pressupor que se pode extrair da leitura da obra em questão uma tese filosófica defendida de modo propositivo. Pretendo tão somente tratar o livro Memórias do Subsolo como um exemplo de alguns aspectos da crítica romântica da modernidade e das consequências que derivam desta crítica. Ao comparar aspectos da filosofia de Rorty e da literatura de Dostoievski este artigo pretende explicitar os pressupostos absolutizantes e essencialistas do Romantismo, bem como a inclinação secularista e politizada do pragmatismo rortyano. No horizonte deste trabalho pretendo considerar que Dostoievski defende uma determinada concepção essencialista da individualidade, para a qual o racionalismo seria particularmente pernicioso tanto do ponto de vista ético quanto existencial. Rorty, em contrapartida, irá procurar defender a idéia de que não precisamos de um “fundamento racional” para as nossas opções éticas ou estéticas, e conseqüentemente, esquivar-se da alegação de que o cidadão de uma sociedade ocidental, desde que devidamente educado ou “culto”, teria necessariamente na escolha norteada pela atitude cientifica do racionalismo o paradigma da ação “legitima”.
O movimento filosófico iniciado pelo iluminismo caracteriza-se, entre outras coisas, pelo esforço em tornar seculares as nossas instituições e pela tentativa de encontrar fundamentos universais para nossas crenças e valores, sem precisar recorrer à religião para fazê-lo. Todavia, para autores como Dostoievski, alguns aspectos desse movimento resultariam em consequências indesejáveis do ponto de vista ético e existencial para os participantes de uma sociedade orientada pela cultura iluminista. Entre as obras do autor a mais representativa deste ponto de vista é o livro memórias do subsolo publicado em 1864 que é também, na opinião de críticos como Berdiaeff, uma das mais importantes obras de Dostoievski. Esta obra bem poderia ser lida como uma espécie de tese ético existencial, uma vez que todo discurso de seu protagonista desenvolve-se através de afirmações e negações de cunho valorativo e de considerações sobre a natureza da individualidade em sua relação de resistência e afirmação com o mundo. Um dos pontos mais relevantes desta tese consiste na tentativa de apontar algumas conseqüências para o individuo das mudanças perpetradas pelo racionalismo iluminista. O autor situa estas consequências no âmbito da relação do indivíduo consigo e deste com o resto da sociedade. O movimento cultural da sociedade européia do século XIX em direção ao utilitarismo, a lógica e ao positivismo é considerado, no interior desta tese, como particularmente problemático, indesejável e, no entanto, inultrapassável e irreversível.
No livro Memórias do Subsolo, o autor russo desenvolve o extenso monólogo de um personagem no qual a subjetividade do indivíduo moderno apresenta-se como um universo caótico e contraditório. Neste, através de um discurso dissolvente e desdenhoso, tal personagem procura afirmar-se em relação à razão na qual o iluminismo pretenderia basear as relações entre os indivíduos e o mundo. Tal auto-afirmação, contudo, longe de ser simples leva o protagonista do livro a recorrentes contradições, mal estar e culpa. Admitindo-se como um homem de “consciência hipertrofiada”, o qual entendo tratar-se do indivíduo moderno, o personagem central do livro parece um exemplo do que Dostoievski acreditara ser o tipo de pessoa que uma sociedade capitalista, liberal e racionalista poderia produzir. O livro também parece apresentar tal indivíduo em sua impossibilidade de recorrer ao modo pré-moderno de conceber as relações humanas. Tal crítica da concepção de racionalidade advinda da modernidade, desenvolvida também por outros autores, encontra na filosofia do norte americano Richard Rorty um novo fôlego, através de um diferente ponto de partida e objetivando propósitos diferentes daqueles de Dostoievski. Se Dostoievski parte, aparentemente, de pressupostos fisicalistas comuns a vários pensadores do século XIX, como Nietzsche, por exemplo, Rorty partirá de pressupostos pragmatistas e historicistas que imprimem um tom bem diverso ao seu discurso. Dostoievski, pelo menos segundo Berdiaeff, também teria como propósito de sua critica da modernidade o estabelecimento de uma nova instância de orientação ética, uma espécie de “Deus imanente”. Rorty ao contrário procura propor a secularização e a relativização ironista destas concepções, tanto no âmbito publico quanto no âmbito privado.
Os pressupostos de Dostoievski o levam ao desenvolvimento de uma critica de orientação existencialista que opõe o pensamento e a razão ao corpo e a vontade. A crítica Rortyana da modernidade, por sua vez, avalia este movimento por suas pretensões, vocabulários e resultados históricos, considerando então que o tipo de sociedade resultante do movimento iluminista possuiria dois aspectos. Um destes aspectos consistiria no seu espírito liberal, que visaria a progressiva secularização de nossas instituições, e a criação de uma sociedade cada vez mais inclusiva e democrática. O outro aspecto consistiria na atribuição de um papel central à razão como uma instância de legitimação dos valores sociais e mesmo dos propósitos privados.
Dostoievski parece considerar que o avanço progressivo da razão não permite a sustentação de valores liberais que somente o cristianismo poderia fundamentar, e ao qual o indivíduo “culto” do século XIX já não poderia recorrer. A atribuição de um papel central a razão parece surgir para Dostoievski como algo inevitável, e os grilhões da cultura iluminista, uma vez subjetivados, dilaceram o protagonista do memórias do subsolo, sem, no entanto deixar de apresentar-se com algo estranho e alienante. Tal indivíduo segue dividido entre a reivindicação de suas pulsões e a necessidade de “auto-respeito” que deriva da internalização das exigências de justificação da razão. A ação sancionada pela racionalidade, no entanto, apresenta-se como impossível para o protagonista, pois este nunca encontra fundamento seguro para suas escolhas. Cada tentativa de formular um juízo com base nas causas primeiras e em fundamentos racionais fracassa, pois cada causa remete sempre a uma causa anterior. Dessa forma Permanece tal indivíduo em um estado de impotência e inércia por não encontrar um principio norteador da ação ou em um estado de culpa por agir sem bases racionais que legitimem sua ação.
A narrativa literária de Dostoievski conduz o individuo moderno a uma desconfortável e contraditória posição a partir da qual sua potência intelectual leva-o a uma impotência prática enquanto os indivíduos capazes de realizar algo de modo concreto o são por não terem desenvolvido suas potências intelectuais. Desse ponto de vista a modernidade poderia ser descrita como um projeto que condenou suas próprias aspirações, inviabilizando a efetivação de suas pretensões prescritivas e morais em função de seus aspectos críticos e dissolventes. O desejo e a vontade apresentam-se nesse quadro referencial como o principio esquecido e irracional da ação humana,[1] principio esse que não se submete aos impositivos morais que a razão pretenderia prescrever às pessoas de “carne osso” como diria Miguel De Unamuno. No entanto, a vontade tampouco oferece um critério de guia que possa acalmar e oferecer o “sossego” prometido pela razão, pois quer o individuo queira, quer não, ela aí se encontra a exigir dele a satisfação de seus atos perante os seus tribunais.
Partindo de uma abordagem pragmática que leva em consideração a história, a utilidade de certas perspectivas filosóficas e as consequências epistemológicas dos trabalhos de filósofos como Wittgenstein, Rorty rejeitará o postulado iluminista acerca da necessidade de um fundamento universal para nossas deliberações. Todavia, ao contrário de Dostoievski, Rorty não desenvolverá essa rejeição recorrendo a defesa de uma natureza humana intrínseca para a qual a introjeção dos valores da cultura iluminista seria malsã. Apesar de suas inclinações românticas e estetizantes a obra rortyana em seu escopo traz uma aguda critica à perspectivas românticas como a de Dostoievski, atribuindo as mesmas o status de:
“(...) Platonismos as avessas- A tentativa romântica de enaltecer a carne em relação ao espírito, o coração em relação a mente, e uma faculdade mítica chamada “vontade” em relação a outra faculdade igualmente mítica chamada “razão.” [2]
Enquanto a perspectiva platônico - kantiana criticada por Dostoievski identifica a natureza humana com os procedimentos generalizantes da razão, o autor de memórias do subsolo critica essa razão substituindo-a pela vontade e pelo desejo. A vida, a vida da carne, da qual o espírito ou a linguagem seria apenas uma pequena parcela, constitui-se como a essência humana presumida pelo monólogo que Dostoievski desenvolve em memórias do subsolo. Refutando as pretensões do iluminismo de identificar as prescrições universalizantes do racionalismo e do utilitarismo com a natureza dos próprios indivíduos, esta literatura não deixa de defender uma descrição da natureza com pretensões de verdade, não se diferenciando, portanto, do kantianismo em relação ao seu essencialismo fundamentalista.
È preciso pontuar que Rorty está distante de Dostoievski no tempo e ciente, tanto das limitações que a tradição filosófica encontrou no vocabulário subjetivista que Dostoievski adota, quanto da indesejabilidade política e prática de sua defesa da “vontade” e da “carne” como substitutos da razão iluminista. O tom do discurso contido no livro memórias do subsolo parece enunciar algum tipo de individualismo aristocrático e pouco inclinado ao tipo de sociabilidade que Rorty acredita que poderia ser produzido pela civilização ocidental. Parece que para esse individuo tudo o que a sociedade tem a oferecer são variedades de lazeres e prescrições ético-morais de cunho universalista que servem, tão somente, para multiplicar as possibilidades sensíveis e criar uma consciência culpada pelas ações advindas dessa multiplicação, ações estas que ela não pode evitar.

“O que suaviza em nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas e multiplicidade de sensações e. Absolutamente nada mais. E através do desenvolvimento dessa multiplicidade o homem talvez chegue a sentir prazer em derramar sangue. (...) Outrora ele via justiça no massacre e destruía de consciência tranqüila, quem julgasse necessário; hoje embora consideremos esse derramamento uma ignomínia, assim mesmo ocupamo-nos dessa ignomínia, e mais ainda que outrora.” [3]
Mais otimista, Rorty considera a civilização ocidental como um experimento bem sucedido em muitos aspectos importantes, embora em risco permanente. O julgamento de Rorty baseia-se no critério pragmático segundo o qual nossos juízos são elaborados visando a viabilização de certos propósitos. Para o filósofo americano , portanto, o elogio ou a crítica do liberalismo pós-iluminista não precisa basear-se em “um conjunto transhistórico de conceitos” como vontade, desejo, natureza humana e etc. Para Rorty a sociedade ficaria muito melhor se nos livrássemos da mania metafísica que românticos como Dostoievski herdaram de Platão e passássemos a assumir uma
“(...) justificação circular de nossas práticas, uma justificação que faz parecer bonito um traço de nossa cultura citando outro, ou comparando de forma discriminatória de nossa cultura com outras , fazendo referência a nossos próprios padrões (...)”
As aspirações éticas da modernidade, acredita Rorty , poderiam ser defendidas melhor ao abrirmos mão do tipo de justificação através da adequação a “fatos” ao qual Dostoievski parece considerar muito difícil esquivar-se. As “razões” para defender estas aspirações, para Rorty, seriam muito mais produzidos pelos participantes de uma comunidade lingüística que “encontrados” por uma consciência reflexiva e impessoal do tipo platônico-cartesiano. Esta produção se daria tanto através da redescrição dos processos históricos que deram origem aos valores de nossa sociedade, bem como através da comparação entre os nossos valores e os valores de outras sociedades. Para uma cultura anti-essencialista como esta, uma cultura que tem de si mesma a imagem de experimento, seria mais adequada uma descrição da individualidade que não reivindicasse um estatuto epistêmico privilegiado, nem a defesa de uma essência do si - mesmo como Dostoievski parece fazer. Rorty opta por uma descrição da individualidade que permita a cada um de nós ver o outro como um exemplo de processo auto-criativo e não como um exemplar de fracasso ou sucesso na adequação a padrões éticos universais. A colaboração social e a inclinação para o diálogo poderiam tornar-se mais fáceis uma vez que nossos princípios éticos fossem vistos como elaborações pessoais advindas de nossa história e não como imperativos categóricos cujo cumprimento determinaria quem é ou não digno de ser escutado. Essa descrição do si - mesmo (cujo apelo auto - estetizante aproxima-se da elegia do auto-engajamento dostoievskiano, da resistência a um padrão pré- estabelecido) define a individualidade como um processo auto-criador que se utiliza da invenção de metáforas no sentido de sintetizar as vivências que o acaso coloca no caminho de cada um, elaborando assim critérios éticos pessoais.
Essa auto-criação, que cada um desenvolveria de sua própria maneira, seria a concessão que Rorty faz ao romantismo, concessão esta que faz da literatura um instrumento muito mais eficaz para a produção de tipo de vinculo social que a modernidade esperava produzir com um vocabulário cientifico que via no intelectual o paradigma da realização humana.
“Visto por esse ângulo o intelectual é apenas um caso especial – Apenas alguém que faz com marcas e com ruídos o que outras pessoas fazem com seus conjugues e filhos, seus colegas de trabalho, os instrumentos de seu oficio, as contas correntes de suas empresas, os bens que acumulam em casa, (...). Tudo, desde o som de uma palavra, passando pela cor de uma folha, até a sensação de um pedaço de pele, pode servir, como nos mostrou Freud, para dramatizar e cristalizar o sentido de identidade pessoal de um ser humano.” [4]
Essa definição da individualidade como um processo contingente de auto-construção a partir da apropriação de elementos presentes nas vivências individuais permitiria a relativização da distinção entre “contra-indicação prática e culpa moral” [5]. Tal definição também permitiria a substituição de concepções éticas ancoradas no uso de uma suposta faculdade chamada razão, pela concepção do vinculo ético baseado na ampliação da relação de lealdade que caracteriza as relações familiares. A ética rortyana procuraria esvaziar a critica da modernidade de qualquer forma de nostalgia transcendental, nostalgia essa presente em muitas obras de Dostoievski, como assinala Berdiaeff no seu livro O espirito de Dostoievski. Esse anseio seria o lado do romantismo que Rorty acredita não ser muito útil para os propósitos de uma comunidade liberal, embora inócuo se mantido no interior da esfera privada. A busca de um deus imanente, em substituição ao deus transcendente do cristianismo e a razão absoluta do iluminismo, seria o propósito por detrás da denuncia exposta no livro memórias do subsolo, um propósito de cunho estritamente pessoal e auto-estetizante.
Contudo, ao evocar também uma atitude de auto-engajamento o livro de Dostoievski poderia ser lido como exercendo uma ação terapêutica sobre certas inclinações “clericais” de nossa cultura, leitura que me parece semelhante a que Rorty faz de Freud[6]. Dessa maneira poderíamos dar uma relevância especial a seus aspectos críticos e negativos, desejando ver a mesma suspeita em relação a razão difundida em nossa cultura, e enquanto circunscrevemos ao âmbito privado sua demanda por um deus imanente, ou sua elegia da vontade e do desejo. Diríamos então que Dostoievski opõe as potências desejantes, contingentes e indeterminadas dos indivíduos em seu anseio de auto-realização às pretensões do universalismo racionalista. Essa possível conciliação entre o escritor com pretensões presumivelmente filosóficas e o filósofo com inclinações declaradamente literárias, obviamente contempla muito mais os propósitos do segundo que do primeiro. Todavia, a convergência não é acidental se considerarmos o neo-pragmatismo rortyano como uma tentativa de dar continuidade ao processo iniciado com o romantismo, processo esse que levou-nos a considerar o homem como “a medida de todas as coisas” como diria Protágoras. Esse processo, o próprio romantismo não teria consumado devido a sua defesa do advento de uma novo tipo de sacralidade ao qual os homens deveriam submeter os propósitos e contigências caracteristicos de suas vidas.
Referências

Dostoiévski, Fiódor- Memórias do Subsolo- Trad. Boris Schnaiderman Ed. 34 – SP 2000
Rorty, Richard- Ironia Contigência e Solidariedade- Trad. Vera Ribeiro Ed. Martins Fontes SP 2007
Berdiaeff, N. - O espírito de Dostoievski- Trad. Otto Schneider. Rio de Janeiro:
Editora Panamericana, [194-?]


[1] “Realmente eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, derrepente, em meio a toda sensatez futura , surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e zombeteira, e, pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo e que mais uma vez possamos viver de acordo com a nossa estúpida vontade?! Isso ainda não seria nada, mais lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: Assim é o homem.” Dostoiévski, Fiodor – Memórias do subsolo pg. 38
[2] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg. 73
[3] Dostoiévski, Fiodor - Memórias do Subsolo pg. 36
[4] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg. 79
[5] Rorty, Richard – Ironia, Contingência e Solidariedade pg.72
[6] Considero que a leitura rortyana de Freud procura dar pouca relevância a sua metapsicologia, conferindo-lhe o estatuto de mera “hipótese de trabalho”, enquanto confere particular importância a sua concepção acerca do desenvolvimento da personalidade a partir da interação com o mundo circundante.