Algumas
vezes, ao iniciar uma aula de introdução à filosofia, não é incomum eu ouvir de
um ou outro dos meus alunos mais corajosos a pergunta “mas afinal de contas,
para que serve a filosofia?” É claro que
qualquer professor experimentado diria que, em muitos casos, essa pergunta
traduz a conhecida inclinação juvenil em esquivar-se de esforços intelectuais
que não sejam estritamente necessários, mas nem sempre isso é verdade. Algumas
vezes, penso, pode-se perceber nesses mesmos alunos uma genuína insatisfação em
relação às aulas de filosofia; o que é legítimo, uma vez que as intuições e
pressupostos que deram origem a essa disciplina estão tão afastados das linhas
mestras que definem o espírito de nossa cultura. Conheço professores e autores
que traduziriam esse afastamento como um sintoma da “decadência moral”,
insensibilidade e preguiça intelectual, fenômenos que caracterizariam a alienação
das sociedades de massa. Alguns desses professores talvez pensem que para
valorizar a própria disciplina é necessário desvalorizar “teoricamente” os
traços que caracterizam as sociedades que desprezam essa mesma disciplina. Essa desvalorização, contudo, estabelece um
impasse. Ela cria um abismo entre as expectativas dos alunos acerca de qualquer
conhecimento relevante e as próprias convicções do professor acerca do que merece
ser chamado de filosofia. Suponho que esse abismo se torna mais fundo em função
da persistente atitude crítica desses professores diante das intuições
“pragmáticas” e “contextualistas” da cultura contemporânea. Essa atitude,
penso, apela para uma suposta faculdade, ou habilidade, que tornaria os alunos
capazes – se tiverem boa vontade - de considerar certas “problemáticas” cuja
relevância seriam evidentes em si mesmas. Ao tentar desqualificar o desdém dos
alunos por sua disciplina, esses professores utilizam-se frequentemente de
narrativas históricas que colocam esse mesmo desdém como o resultado de um
lento processo de decomposição da capacidade de dar-se conta de problemas perenes,
cuja importância deriva de nossa condição
distintivamente humana. Essa dramatização é o único recurso que eles têm
para tentar reestabelecer o fio do diálogo e, desse modo, obter dos alunos a
disposição em considerar suas preciosas questões filosóficas. Entretanto, acho difícil conseguir a simpatia
de nossos interlocutores através de narrativas que desqualificam massivamente
os traços que definem suas identidades. Por outro lado, a compreensão da
filosofia como uma disciplina capaz de avaliar as pretensões de outras áreas da
cultura de uma perspectiva privilegiada induz a esse tipo de desqualificação. Se correta minha análise do impasse descrito
acima, este deve-se a um choque entre
dois padrões distintos de auto-compreensão que entram em conflito, um dos dois precisa
ser modificado, ainda que sutilmente, ou o diálogo persistirá sendo inviável.
O
impasse que descrevi acima é um exemplo concreto de uma problemática mais ampla
e com muitas outras consequências. Assim como outras situações, ele traz para o
centro do debate filosófico a questão das possibilidades e limites de uma
filosofia pós-metafísica e alinhada com as tendências e expectativas da
sociedade contemporânea. Ou seja, uma
vez que a popularização das ciências e o relativo prestigio que a arte adquiriu
nas “endinheiradas sociedades do ocidente” estabeleceu uma espécie de
“materialismo de senso comum” como padrão cultural dessas sociedades, qual
deveria ser o perfil da filosofia contemporânea? A pergunta tem um caráter
eminentemente prático, pois apela para a intuição de que o entrelaçamento entre
filosofia e o jogo de dar e receber razões exigiria dessa disciplina, em alguma
medida, uma certa atenção e envolvimento com as questões e dilemas que são
relevantes para os participantes desse mesmo jogo, sob risco de se tornar
monológica, sacerdotal e inócua do ponto de vista político cultural.
A questão, entretanto, não precisa ser
colocada apenas desse modo. Poderíamos também considera-la de um ponto de vista
mais teórico. Ou seja, uma vez que os
desdobramentos da filosofia pós-analítica, do pós-estruturalismo e das críticas
à proposta de um “materialismo científico” lançam sérias duvidas sobre os projetos fundacionistas
da filosofia clássica, existiria ainda algo a ser feito pela filosofia em
relação à questões de ordem ética ou política, algo mais do que estimular uma
atitude de suspeita? Ou a filosofia
deveria tornar-se “científica” e debruçar-se apenas sobre os aspectos formais
do discurso e dos juízos? Esses dois modos de abordar a questão da
possibilidade, ou da desejabilidade, de uma filosofia pós-metafísica e pós-epistemológica,
indicam por sua vez dois modos distintos de compreender a função da filosofia.
A primeira formulação do problema leva a sério a necessidade de impedir que a
filosofia se torne inócua do ponto de vista prático. A segunda elaboração do
problema, por sua vez, leva a sério apenas questões de ordem teórica, pois
entende que apenas essas questões são relevantes para o pensamento filosófico. Formular
o problema da primeira maneira me parece a melhor saída. Essa saída consiste em
pensar a filosofia de um modo que toma o
aparente problema como algo que precisa ser encarado sem procurar escapar das
pressões históricas e culturais que suscitam a pergunta.
O
filósofo hoje, penso, precisa ser muito mais erudito e sensível às demandas do
seu tempo do que jamais foi. Ele precisa ser um poli-instrumentista em termos
de vocabulários, referências e sensibilidade existencial e/ou política. Em
tempos de internet a especialização do trabalho do filósofo é algo que precisa
dividir espaço, e talvez o maior espaço, com uma auto-formação abrangente e sofisticadas
o bastante para permitir que ele possa intervir de modo eficiente na sociedade
da qual ele participa. Alguém que domina muitas referências, e que através da
exegese filosófica dotou-se da habilidade de explicar livros importantes para a
tradição ocidental, é capaz – penso – de dar uma contribuição importante para a
ampliação das possibilidades prático-existenciais de nossos jovens. Outros intelectuais também podem fazer isso,
claro, recorrendo a cânones e abordagens diferentes, mas nesse caso o sucesso
depende do abandono da velha por um “método”. Como toda obsessão essa também
nos impede de dar resposta aos problemas práticos de nossa época.
[1] As
ideias apresentadas nesse ensaio
procuram nortear-se pelo trabalho do Filósofo Norte-Americano Richard Rorty.
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