quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Para que Serve a Filosofia: O mal estar Na Sala de Aula e o Que Podemos Esperar da Filosofia – Parte I [1]

Algumas vezes, ao iniciar uma aula de introdução à filosofia, não é incomum eu ouvir de um ou outro dos meus alunos mais corajosos a pergunta “mas afinal de contas, para que serve a filosofia?”  É claro que qualquer professor experimentado diria que, em muitos casos, essa pergunta traduz a conhecida inclinação juvenil em esquivar-se de esforços intelectuais que não sejam estritamente necessários, mas nem sempre isso é verdade. Algumas vezes, penso, pode-se perceber nesses mesmos alunos uma genuína insatisfação em relação às aulas de filosofia; o que é legítimo, uma vez que as intuições e pressupostos que deram origem a essa disciplina estão tão afastados das linhas mestras que definem o espírito de nossa cultura. Conheço professores e autores que traduziriam esse afastamento como um sintoma da “decadência moral”, insensibilidade e preguiça intelectual, fenômenos que caracterizariam a alienação das sociedades de massa. Alguns desses professores talvez pensem que para valorizar a própria disciplina é necessário desvalorizar “teoricamente” os traços que caracterizam as sociedades que desprezam essa mesma disciplina.  Essa desvalorização, contudo, estabelece um impasse. Ela cria um abismo entre as expectativas dos alunos acerca de qualquer conhecimento relevante e as próprias convicções do professor acerca do que merece ser chamado de filosofia. Suponho que esse abismo se torna mais fundo em função da persistente atitude crítica desses professores diante das intuições “pragmáticas” e “contextualistas” da cultura contemporânea. Essa atitude, penso, apela para uma suposta faculdade, ou habilidade, que tornaria os alunos capazes – se tiverem boa vontade - de considerar certas “problemáticas” cuja relevância seriam evidentes em si mesmas. Ao tentar desqualificar o desdém dos alunos por sua disciplina, esses professores utilizam-se frequentemente de narrativas históricas que colocam esse mesmo desdém como o resultado de um lento processo de decomposição da capacidade de dar-se conta de problemas perenes, cuja importância deriva de nossa condição  distintivamente humana. Essa dramatização é o único recurso que eles têm para tentar reestabelecer o fio do diálogo e, desse modo, obter dos alunos a disposição em considerar suas preciosas questões filosóficas.  Entretanto, acho difícil conseguir a simpatia de nossos interlocutores através de narrativas que desqualificam massivamente os traços que definem suas identidades. Por outro lado, a compreensão da filosofia como uma disciplina capaz de avaliar as pretensões de outras áreas da cultura de uma perspectiva privilegiada induz a esse tipo de desqualificação.  Se correta minha análise do impasse descrito acima, este deve-se a  um choque entre dois padrões distintos de auto-compreensão que entram em conflito, um dos dois precisa ser modificado, ainda que sutilmente, ou o diálogo persistirá sendo inviável.
O impasse que descrevi acima é um exemplo concreto de uma problemática mais ampla e com muitas outras consequências. Assim como outras situações, ele traz para o centro do debate filosófico a questão das possibilidades e limites de uma filosofia pós-metafísica e alinhada com as tendências e expectativas da sociedade contemporânea.  Ou seja, uma vez que a popularização das ciências e o relativo prestigio que a arte adquiriu nas “endinheiradas sociedades do ocidente” estabeleceu uma espécie de “materialismo de senso comum” como padrão cultural dessas sociedades, qual deveria ser o perfil da filosofia contemporânea? A pergunta tem um caráter eminentemente prático, pois apela para a intuição de que o entrelaçamento entre filosofia e o jogo de dar e receber razões exigiria dessa disciplina, em alguma medida, uma certa atenção e envolvimento com as questões e dilemas que são relevantes para os participantes desse mesmo jogo, sob risco de se tornar monológica, sacerdotal e inócua do ponto de vista político cultural.
  A questão, entretanto, não precisa ser colocada apenas desse modo. Poderíamos também considera-la de um ponto de vista mais teórico. Ou seja,  uma vez que os desdobramentos da filosofia pós-analítica, do pós-estruturalismo e das críticas à proposta de um “materialismo científico”  lançam sérias duvidas sobre os projetos fundacionistas da filosofia clássica, existiria ainda algo a ser feito pela filosofia em relação à questões de ordem ética ou política, algo mais do que estimular uma atitude de suspeita?  Ou a filosofia deveria tornar-se “científica” e debruçar-se apenas sobre os aspectos formais do discurso e dos juízos? Esses dois modos de abordar a questão da possibilidade, ou da desejabilidade, de uma filosofia pós-metafísica e pós-epistemológica, indicam por sua vez dois modos distintos de compreender a função da filosofia. A primeira formulação do problema leva a sério a necessidade de impedir que a filosofia se torne inócua do ponto de vista prático. A segunda elaboração do problema, por sua vez, leva a sério apenas questões de ordem teórica, pois entende que apenas essas questões são relevantes para o pensamento filosófico. Formular o problema da primeira maneira me parece a melhor saída. Essa saída consiste em pensar a filosofia de um modo que  toma o aparente problema como algo que precisa ser encarado sem procurar escapar das pressões históricas e culturais que suscitam a pergunta.
O filósofo hoje, penso, precisa ser muito mais erudito e sensível às demandas do seu tempo do que jamais foi. Ele precisa ser um poli-instrumentista em termos de vocabulários, referências e sensibilidade existencial e/ou política. Em tempos de internet a especialização do trabalho do filósofo é algo que precisa dividir espaço, e talvez o maior espaço, com uma auto-formação abrangente e sofisticadas o bastante para permitir que ele possa intervir de modo eficiente na sociedade da qual ele participa. Alguém que domina muitas referências, e que através da exegese filosófica dotou-se da habilidade de explicar livros importantes para a tradição ocidental, é capaz – penso – de dar uma contribuição importante para a ampliação das possibilidades prático-existenciais de nossos jovens.  Outros intelectuais também podem fazer isso, claro, recorrendo a cânones e abordagens diferentes, mas nesse caso o sucesso depende do abandono da velha por um “método”. Como toda obsessão essa também nos impede de dar resposta aos problemas práticos de nossa época.



[1] As ideias apresentadas nesse ensaio  procuram nortear-se pelo trabalho do Filósofo Norte-Americano Richard Rorty. 

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