sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Esboço de uma superação do Dualismo em Platão



O presente trabalho pretende conduzir a uma reflexão a cerca da possibilidade de uma leitura não dualista da obra de Platão. Tal proposta extrai a sua relevância do estigma projetado sobre a obra do filósofo pelo advento da tradição metafísica ocidental. Obviamente não é possível negar a presença na obra do autor de elementos que podem conduzir a visualização de um dualismo quase maniqueísta, mas é nocivo crer que tal dualismo seja uma característica necessária ou mesmo preponderante no pensamento platônico. Para tentar fornecer o que seria o esboço de uma interpretação que tenta superar tal tendência fornecendo uma leitura na qual o dualismo da obra platônica figura apenas como elemento retórico, tomarei o discurso de diotima no diálogo “O Banquete” como um exemplo de argumentação que aponta para uma concepção que supera o dualismo.
A filosofia de Platão constitui em si mesmo uma admirável caleidoscópio de teses que vão em múltiplos sentidos nem por isso pode-se afirmar que sua filosofia constitui um caos desordenado de teses contraditórias Um liame intencional perpassa toda a sua obra conferindo-lhe unidade. Desde a estrutura do dialogo aberto, onde os participantes expõem seus pontos de vista unidos por um laço fraterno até a contemplação privada do belo e do bem, é o Eros que possibilita os mais relevantes aspectos de sua filosofia. Superando as preocupações pré-socráticas com a origem do mundo fenomênico, Platão busca o lugar da alma humana na ordem geral do cosmos. No Banquete, coincidência ou não um dos mais belos diálogos de Platão o amor é tematizado por diversos interlocutores figurando na maioria deles como a divindade primordial situada na própria origem do cosmos. Contudo é no discurso de Diotima que Eros afigura-se não só como uma força motriz da geração e corrupção, mas principalmente como o Daimon responsável pela união das diversas esferas.
Nesta rica exposição na qual assistimos Sócrates aprender de uma estrangeira da Mantineia os segredos do amor, encontramos uma imagem deste muito diferente da oferecida pelos outros interlocutores: “um grande daimon, Sócrates (...) situa-se entre o mortal e o imortal.”(Platão,o banquete pág. 74) Entre esses dois extremos, liga-os preenchendo o espaço entre eles mantendo o todo coeso e facultando a relação entre as diversas esferas do real. O amor permite a união de um diferente ao outro, não como uma relação física entre dois corpos que permanecem separados conquanto se toquem mas antes fazendo-os participar um do outro. E realizando respectivamente seus desejos no seio da totalidade.
No aspecto do conhecimento existe uma compreensão proporcionada pelo Eros, não a da ordem do discurso, mas sim uma pré-compreensão de ordem afetiva que faz o amante participar em parte daquilo que almeja conhecer e comungar por inteiro. O dualismo na obra de Platão tornado tão relevante para a metafísica ocidental parece perder sua força na medida em que esboça-se o papel do Eros na compreensão da relação entre as diversas instâncias do real. A função desse grande espírito pode ser melhor compreendida através do mito fornecido por Diotima. No dia do banquete em homenagem ao nascimento de Afrodite filho de Penúria e de Engenho ele assim teria nascido: “Um eterno mendigo (...) aturado poeirento, descalço dormindo ao relento na poeira dos caminhos” (Platão, O Banquete pág.75).
E ao mesmo tempo:
“Vive espreitando o que é belo e bom por que é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso passando a vida a filosofar, um mago extraordinário, um verdadeiro sofista.”(Platão,o banquete. pag75

Em perpetua metamorfose e oscilação entre a geração e a corrupção, disposto a tudo arriscar pelo alvo de seus desejos, carente do néctar insubstituível que é o bom e o belo, sempre a meio caminho da realização de qualquer uma de suas possibilidades a figuração desse espírito é o retrato da condição humana.
Esse mesmo estado de carência do amor é também a causa do percurso em direção ao infinito, no qual todos os objetos de momentânea satisfação precisam ser superados, o que ocasiona um constante ultrapassamento de si mesmo uma vez que da natureza do objeto amado depreende-se a natureza do indivíduo amante. O risco sempre presente durante essa grande jornada é deter-se a uma das metas situadas a meio caminho entre o finito e o infinito e tal qual os marinheiros de Odisseu dormir ao provar do loto dos prazeres sensíveis esquecendo-se da natureza de sua jornada, condenando a tão sonhada comunhão com o bem dos bens, a sua “Ítaca” eterna.Aqui compreende-se que essa mesma jornada é o fluxo composto de inspiração e expiração reter o fluxo é cortar o liame com a vida , o desejo acometido da cegueira que não se submete as injuções da razão,torna-se incontinente e apegado,deixando-se arrastar até tornar-se um escravo de um tipo inferior de satisfação, condenando a sua realização . Nessa medida o mundo sensível é uma instância primária, um degrau, para o mundo inteligível das formas e o amor pelos corpos e pelos objetos o primeiro passo na demanda para o amor as formas puras que conferem beleza a tais corpos. Ao contrário do que se costuma afirmar vemos aqui o mundo da geração e da corrupção não como mera negatividade mais sim como ponto de partida para um bem maior.
A realidade em sua totalidade constitui-se de uma tensão uma mobilidade entre ser e não ser atingir e ultrapassar deter-se em qualquer dos dois pólos desse movimento eterno é ignorar a natureza da totalidade mutilando-a. O papel do diálogo insere-se nessa perspectiva e muito mais do que estabelecer teses ou certezas consumadas como alguns afirmam ser a tarefa da filosofia, pretende ser uma iniciação, um trabalho sobre si para forjar-se como um amante do conhecimento mesmo sem tê-lo ainda possuído, ou melhor, justamente por isso. Afirma José Américo Mota Peçanha: “Logos e Eros são inseparáveis” O discurso sempre ultrapassa teses particulares quando os interlocutores motivados pelo amor a verdade estão sempre dispostos a colocar sob dúvida os seus pontos de vista, a dualidade aparente entre uma tese e outra é superada pelo Eros que motiva o dialogo e nele se encarna, a dualidade aparente entre sensível e inteligível é superada pelo amor que abarca o real em sua multiplicidade conferindo-lhe sentido.
Subir, elevar-se, superar-se não seriam então meros anseios acidentais advindos de algum capricho cego e instintivo mais antes a volição mais fundamental da alma. A aspiração por aquilo cujo pressentimento anuncia uma pré-compreensão ou uma memória esvaecida que deseja vir a tona tornando-se clara visão. Tal memória assemelha-se a gestação de uma estrela inquieta que é o fruto sonhado de nós mesmos, isso também caracteriza o Phatos do amor em Platão. A busca do belo como ocasião para geração de si mesmo, ou seja, a participação na imortalidade divina, auto-transcendência aqui não se constitui como uma violência reativa sobre si mesmo, mas sim como a busca de satisfação, da mais alta aspiração humana, o único gesto que pode realizar cada aspecto humano de acordo com sua justa reivindicação.
A ânsia pela imortalidade perpassa todos os níveis da realidade e cada um deles procura consumar tal propósito de acordo com a natureza que lhe é peculiar. O desejo de felicidade prometido pelo alvo da aspiração humana reivindica eternidade e a disposição incomum de sacrificar uma expressão relativa e limitada da satisfação desse anseio em função de um gozo maior e mais alto através de uma manifestação mais pura. Os pais morrem se preciso por seus filhos, vêem neles sua participação na imortalidade. Essa é a única realização possível aos animais. Ao homem, todavia está reservada uma tarefa de muito mais ampla magnitude, como filósofo ele deve ultrapassar o apreço aos objetos e aos corpos na demanda em direção ao amor em si mesmo, o sacrifício de afastar-se do prazer efêmero que tais objetos podem proporcionar não se compara a alegria que mesmo a simples esperança de contemplar o bem dos bens proporciona. Sacrifício aqui não indica ação desagradável imposta sobre si mesmo, mas antes o gesto supremo de fazer o sagrado (sacrum-facere).
A dualidade na obra de Platão se tomada a partir de tal exposição pode ser considerada apenas um elemento retórico ou até epistémico, aspectos cuja relevância devem-se em grande medida a nossa própria pretensão a cerca da tarefa e da natureza do exercício filosófico. Ele mesmo afirmou existirem diversas maneiras de comunicar afinidade com os diversos temas que se comunica, metáforas, analogias, números e etc. A obra de Platão visa a totalidade da existência e para a compreensão de sua filosofia é indispensável analisá-la a luz de tal expectativa. Somente a compreensão do lugar do homem no cosmos lhe permite traçar o esboço de nossa natureza e do caminho para realização de suas possibilidades, o amor é o fio de Ariadne que possibilita ao homem a superação das dualidades e também a força responsável pelo seu apego e queda, ele é o tema principal do diálogo e a própria essência deste.
Da multiplicidade fenomênica a unidade da essência pura onde o verdadeiro regogizo enche de júbilo o filósofo, a alma traça seu caminho, superando as diversas etapas, norteada pela clara luz da razão e movido pelo amor ao belo. Somente aos “prenhes segundo a alma”(Platão,o banquete.pag 76) está reservada a realização da imortalidade latente em todo o homem. A inefabilidade perpassa todos os momentos desse progresso: Do pressentimento ilustrado pela prenhez que desconhece seu rebento até a contemplação beatífica há uma compreensão que resiste a uma transmissão conceitual inequívoca, no entanto tal compreensão é causa e objetivo do raciocínio conceitual. No limiar do templo deve silenciar o discurso acerca da natureza desse bem em si mesmo. Cumpre evitar a Hibris de querer traduzi-lo por palavras, assim é a iniciação. Somente os iniciados, os que seguiram os passos apontados pela sacerdotiza podem atingir o ponto onde cessam as palavras por cessarem as dualidades.




Bibliografia


-Platão ,um banquete( trad.Jaime Bruna,ed Cultrix.Paulo 1985)


- José Américo Mota Peçanha as diversas faces do amor em Platão,A
oferta do mel

- Victor Goldchmidt A Religião de Platão(trad. Ieda e Oswaldo Porchat.
edt D.E.L.S.Paulo )

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