Penso que devem existir filósofos para os quais a afirmação de Alfred Whitehead (1929) de que a história da Filosofia "não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão” embora soe exagerada não deixa de ser verossímil. Suponho, contudo, que a maioria desses mesmos filósofos não sentem-se muito a vontade com as perspectivas políticas oferecidas por esse mesmo Platão em A República e certamente tentam separar as pretensões universalistas do platonismo das consequências aristocráticas e anti-democráticas manifestas na obra Magna do filósofo grego. Uma separação que o filosófo alemão Johann Kaspar Schmidt, mais conhecido pelo pseudônimo de Max Stirner, talvez considerasse impossível. Em sua obra principal, O Único e sua Propriedade, Stirner desenvolve um discurso, cuja natureza bem poderíamos chamar de anti-platônica, que denuncia os resultados anti-democráticos das pretensões de universalidade características de muitos sistemas filosóficos. A perspectiva oferecida por Stirner parece indicar a existência de uma relação estreita entre a atribuição de um aspecto “universal” ou “absoluto” a certos pensamentos e a instauração de relações mundanas sob a tutela de princípios e hierárquias. Para Stirner, contudo, tais hierarquias seriam apenas estratégias existênciais, modos de lidar com o mundo, adotados pelos “fanáticos do Sagrado”, indivíduos interessados e possessivos mas que tentam incutir o temor a algo “Sagrado, eterno e imutável” com o objetivo de se impor, o que levaria a divisão dos homens em cultos e incultos. Os primeiros prestam honras ao sagrado, ocupam-se de idéias, do pensamento, os segundos tratam de suas necessidades vitais mas como não sabem impor-se aos primeiros terminam por deixar-se imolar no altar dos nobres princípios. Tal veneração, defendida de modo veemente pelos pensadores que fazem parte do que Stirner chama de “pastoral das almas”, denuncia sua natureza pela maneira como lida com o senso de humor. “De fato nada existe de mais sério do que os idiotas quando toca-se no cerne da sua idiotice:tanto zêlo os faz perder totalmente o sentido do humor [basta olhar para os manicômios] (STIRNER, UP, Pg.87). Essa seriedade seria uma das características do que ele chama de veneração pelo Sagrado, uma atitude existencial de consequências importantes para a relação entre aquele que a adota e o mundo que o circunda. Algumas dessas consequências apontadas por Stirner são cruciais para a compreensão da filosofia do modo sugerido por Whitehead . A idéia, por exemplo, de que certas palavras como “verdade”, “liberdade”, prova”, “fato” possuem um valor nelas mesmas é uma dessas consequências. Independente do uso que podemos dar a tais expressões estas possuiriam, para alguns intelectuais, algo que é intrissecamente valioso e substituir uma delas por outra, a palavra verdade pela palavra prazer por exemplo, seria algo semelhante a um sacrilégio. Para Stirner tal atitude reflete a convicção de que tais palavras encarnam algo que nos “escapa”, que é “maior e mais sublime”. “Algo que nos foge” e diante do que só podemos dobrar os joelhos em veneração. Se a seriedade nos agrilhoa ao Sagrado, apenas o humor e tudo que vincula-se a um sadio sentido de auto-afirmação e fruição de si pode conjurá-lo, o que para Stirner não implica abrir mão da cultura teórica da modernidade nem da filosofia, pelo contrário, trata-se de usá-las a nosso “bel prazer”. Se o platonismo tem consequências anti-democráticas e tende a produzir um verticalismo que coloca o intelectual no topo da hierárquia cultural , penso que seria razoável afirmar que um anti-platonismo radical como o de Stirner só pode ter consequências hiper-democráticas e horizontalizantes. Se a cultura platônica faz o homem “deixar de ser criativo para se tornar aprendiz” o fim do estado de minoridade sob a presumida tutela dos intelectuais permitiria a produção de uma cultura ricamente estetizada e pragmatizada na qual os indivíduos relacionam-se uns com os outros sem a mediação de nada que não seja um mero produto deles mesmos. Rindo mais que venerando talvez nos tornassemos mais eficientemente imunizados contra os fundamentalismos que volta e meia batem a nossa porta. O riso, afinal de contas, talvez possa fazer muito pela filosofia.
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