O Presente texto pretende acompanhar parte da argumentação desenvolvida pelo filosofo norte Americano Richard Rorty no livro Philosophy And Social Hope. Através de tal acompanhamento pretendo apontar para a especificidade do seu filosofar e a impossibilidade de enquadra-lo dentro de esquemas conceituais baseados no que ele denomina de “metáforas visuais”. Concomitantemente espero demonstrar também como a esperança social ocupa uma posição determinante das opções epistemológicas que o seu pragmatismo assume.
A partir do século XIX a filosofia passou a incorporar a sua agenda a reflexão acerca das melhores maneiras de promover a instauração de justiça no interior da sociedade, concomitantemente tornou-se também muito comum justificar a própria posição filosófica contextualizando-a no interior de uma narrativa do processo histórico ao qual o pensamento, a sociedade e as instituições humanas estão submetidos. Todavia, apesar de muitos filósofos recorrerem a história para justificar suas teses, e suas concepções acerca do que é justo, nem todos eles admitiam a imersão destas mesmas teses e valores no caudaloso rio do tempo onde “tudo flui”. Segundo essa forma de narrativa denominada historicista a determinação dos fatos derivada do Devir histórico não abarcaria, em alguns casos, a “interpretação” destes mesmos fatos e, em outros, a própria noção do que é interpretar, ou seja, o que aí se chama de história seria uma sucessão de acontecimentos, cuja interpretação consistira em fornecer um “reflexo acurado” dos fatos, estando por sua vez tal modo de elaborar esse retrato submetido a algo maior e invariável o bastante para que se pudesse formular leis aplicáveis a diversas interpretações.
Essa inclinação, se por um lado advogava pelo espírito democrático e não-tutelar do conhecimento, movida possivelmente pelo anseio iluminista de igualdade e justiça, por outro lado negava-se a abrir mão de uma concepção estática e talvez mesmo aristocrática do que seria conhecer. Uma forma de explicar essa tendência seria afirmar que as mudanças sociais que surgiram na esteira do Iluminismo e que possibilitaram esse tipo de “consciência histórica”, na forma de relativização de certos vocabulários, preservaram ainda um resquício de certos hábitos comunicativos caracterizados, sobretudo, pela necessidade de recorrer a oposições cruciais entre substancia e acidente, necessário e contingente e em tentar unir em uma única síntese vida pública e vida privada. Ambos os aspectos, a utilização de oposições cruciais, e a tentativa de unir o público e o privado em uma única concepção filosófica, que Richard Rorty chama de Platonista, são os alvos da sua critica do fundamentalismo filosófico. Tal critica se desenvolve como uma tentativa de emancipar a filosofia, e a cultura como um todo, dos seus resquícios essencialistas, que ele irá considerar antidemocráticos, facilitando assim a cooperação social através da elaboração de vocabulários mais inclusivos, persuasivos e possibilitando a realização do que estaria em primeiro plano para o pensamento ocidental contemporâneo: a felicidade humana.
No livro “Philosophy And Social Hope” Richard Rorty fornece uma aguçada e instigante descrição da atividade filosófica para a qual tais “paradigmas” representam um apego a hábitos comunicativos herdados de nossos antepassados, hábitos esses, ultrapassados, inúteis e mesmo perigosos para os propósitos dos participantes de uma sociedade democrática. Esses hábitos, cultivados lado a lado com as esperanças por uma sociedade mais justa e mais inclusiva impediriam a realização de tais esperanças ao situar a verdade, no sentido da correspondência entre fato e linguagem, no primeiro plano da atividade filosófica. Isso limitaria a possibilidade de realizar noções como justiça, fraternidade e igualdade através de uma participação coletiva por solicitar aos individúos a adequação à supostas realidades atingidas através do que Hilary Putnam denomina “olhar de Deus”.
Tendo, segundo o relato auto-biográfico, estado envolvido durante os primeiros anos de sua atividade intelectual com a proposta Platônica de sustentar realidade e justiça em uma única visão Rorty, chegou a conclusão de que tal tentativa é um equívoco, e podemos citar dois dos principais motivos que o mesmo pontua para essa afirmação. Em primeiro lugar por causa das peculiaridades dos jogos lingüísticos que usamos para tentar oferecer justificativas não circulares do que é verdade, e sua absoluta imersão na luta humana pelo bem estar. Tornaria-se tal tentativa autodecepcionante, por estar toda escolha de vocabulário radicada na posição pessoal acerca do que é útil. Em segundo lugar devido à própria solidariedade, da qual depende qualquer tentativa de promover a justiça social e cujo sucesso não poderia depender tentativa de ligar as idiossincrasias pessoais dos indivíduos com um compromisso público com outros indivíduos. Para Rorty as descrições do que é “bom” que se pretendem validas para todos os indivíduos representam um projeto de ver-se como uma encarnação de algo maior que o si - mesmo (Deus, a Razão, o Movimento). A verdade, como uma tentativa de demonstrar o que é bom para todas as pessoas tratar-se-ia apenas da hipérbole de uma idiossincrasia pessoal, uma tentativa de ultrapassar a própria finitude, sendo portanto, contraproducente pois o que cada um vê como a coisa mais relevante a ser feita pode ser insignificante para outra pessoas.
A superação de tais hábitos, e a busca por um discurso ou descrição apta a promover justiça social, inscrever-se-ia, portanto, como um opção significativamente razoável por viabilizar a realização de anseios comuns tanto a filósofos empenhados na busca da verdade, no sentido platônico, quanto a políticos empenhados na promoção da justiça e indiferentes aos discursos grandiloqüentes dos porta vozes do que Rorty denomina de Platonismo. Caracterizar-se-ia assim a filosofia Rortyana como uma busca de promover a realização dos ideais iluministas de fraternidade e igualdade através do rompimento com o compromisso desse mesmo iluminismo com os dualismos da filosofia clássica substituindo estes por sua vez por uma concepção não representacionista e darwiniana do conhecimento. Para essa concepção, que de saída esquiva-se a tentativa platônica de conceber questões e propor problemas que não tenham nenhuma relação com a luta pelo bem estar, a esperança social seria o principal propósito de um discurso com pretensões de consenso público, em uma sociedade como a nossa, bem entendido.
A promoção de justiça para o platonismo não prescindira de uma concepção de ser humano, como ser capaz de colocar de lado seus interesses para ter no conhecimento a partir da distinção entre aparência e realidade um fim em si mesmo. Semelhante estratégia pretenderia recusar a distinção, cara às sociedades democráticas, entre vida privada e vida pública, impondo aos indivíduos compromissos que independem de sua sanção. Richard Rorty considera infeliz para sociedades como a nossa a tentativa de promover o bem estar social a partir de tal concepção de justiça radicada em uma descrição da essência humana que tem na descoberta da verdade seu principal thelos. Considerando a especificidade do momento histórico presente, bem como as criticas elencadas por autores como Hegel, Nietczshe e Dewey à concepção iluminista de racionalidade, esta sugestão infeliz do platonismo poderia, na opinião do filósofo americano, ser adequadamente substituída pela sugestão de uma suposta capacidade humana de cooperação em circunstancias favoráveis.
Essa substituição, que abre mão de ser considerada mais “fiel” a realidade que qualquer outra, permitiria colocar a esperança no lugar do conhecimento, evocando nos indivíduos um compromisso social que não estaria ancorado em uma diluição de sua vida privada na vida publica. Produziria-se o vinculo social através da participação livre evocada pela descrição contingente da solidariedade humana. Colocando a solidariedade humana na dependência da criação das condições adequadas para sua produção e fornecendo uma descrição alternativa à “essência humana” que induz os individuos a verem-se como co-autores dessa mesma solidariedade , o discurso filosófico estimularia a cooperação para realizar essas condições e de saída já favoreceria a própria solidariedade. Ao invés de colocar a solidariedade como o resultado da conversão das índoles a “verdadeira essência humana”, o relativismo de Rorty opta por colocar a produção do vinculo social com uma tarefa do seu discurso. O relativismo, apontado pelos críticos como a principal característica do pensamento Rortyano, teria apenas um papel instrumental no interior da filosofia do mesmo, servindo de acessório ao propósito que ele considera central ao seu filosofar: a promoção do bem estar comum.
O termo, relativista, segundo Rorty, seria aplicado a todos os filósofos que não admitem a definição clássica do conhecimento como adequação às coisas como são em si mesmas, sem levar sem consideração suas relações com outras coisas, em particular, as necessidades e interesses humanos. Todavia, Rorty faz questão de apontar que, embora utilize essa concepção acerca do que é conhecer, o termo relativista não poderia ser aplicado a pragmatistas como ele próprio se denomina. Para Rorty Filósofos como ele e Dewey prefeririam denominar-se em termos negativos tais como “anti-Platonistas” ou “anti-dualistas”. O motivo de tal alegação é óbvio: o relativismo como posição epistêmica admitiria a opção por alguma espécie de platonismo “invertido”, ou operaria no interior de quadros de referência que dão sentido a perguntas como : ”o que conhecemos é produzido por nós ou descoberto pela investigação?” A atribuição de algum tipo de relevância a questionamentos desse tipo implicaria, segundo Rorty, o abandono de uma concepção Darwiniana do conhecimento. Para tal concepção o pensamento humano, ou nos termos do próprio Rorty, nosso vocabulário, é desenvolvido no confronto com o mundo, na constante luta pela sobrevivência e pela felicidade e todas as questões formuladas tem algum tipo de relação com esse propósito, e podem servi-lo bem ou mal. O conhecimento pelo conhecimento em si - mesmo, a investigação que não tem na utilidade o seu propósito, é uma demanda considerada sem sentido, um mero jogo de palavras, uma vez que se opta por uma concepção Darwiniana do conhecimento.
As oposições binárias, que caracterizaram boa parte da noção clássica ou Platonista de racionalidade deveriam ser abandonadas por aqueles que se consideram pragmatistas, segundo Rorty. Os termos do debate entre Essencialistas que consideram indispensável uma concepção clássica de racionalidade e aqueles que acreditam que o termo racionalidade pode ser substituído por um espírito de colaboração e de argumentação horizontalizada, como por exemplo os pragmatistas, não poderia ser colocado a partir do ponto de vista dos primeiros. A opção por uma posição pragmática implicaria, portanto, na adoção de um outro vocabulário, um vocabulário que visasse “a inculcação de novos jeitos de falar, ao invés de esclarecedores argumentos que utilizam velhos modos de falar”[1]. Percebe-se que a critica Rortyana do platonismo esquiva-se por sua vez a categorização de relativista, categorização essa que permitiria aos assim chamados “fundacionalistas” refutarem o argumento Rortyano em seu próprio terreno.
A tradição denominada de relativista, na qual estão inseridos os filósofos europeus pós-nietzscheanos e os filósofos americanos pós-Darwinianos, teria como semelhança de família a critica as distinções Kantianas e Hegelianas entre sujeito e objeto, as mesmas distinções que tornam possível a formulação de questões como: “O que conhecemos é feito ou encontrado?”. Todavia, apesar dessa semelhança negativa ambas as tradições diferenciam-se em um ponto crucial no que tange ao valor atribuído a universalidade e prioridade do conhecimento filosófico em relação a outros exercícios da linguagem, esse ponto seria o que Rorty denomina de naturalização do conhecimento. Esta seria a principal diferença do modo americano e pragmático de conceber o conhecimento, um ponto que traz consigo uma rejeição da divisão entre a filosofia e outras áreas da cultura. Essa divisão, calcada na tentativa iluminista de fornecer algum tipo de vocabulário privilegiado frente a outros vocabulários possíveis, é perigosa quando o que está em questão é a busca de uma concepção de justiça segundo as expectativas de uma sociedade democrática. Rorty prefere ver todas as áreas da cultura como uma teia de esforços para tornar a vida melhor, uma descrição mais útil quando a produção de bem estar social é o que está questão.
A naturalização do conhecimento permitiria o rompimento com a figura cartesiana da mente, que pretende conceber como propósito da inquirição um contato com a realidade fora de si mesma. Para o discurso pragmático as idéias (ou linguagens) são ferramentas com as quais agimos sobre o mundo e que permitem a coordenação de nossas ações com outras pessoas para um fim em comum. Para efetuar tal naturalização, portanto, o principal recurso da argumentação pragmatista seria a relatividade do valor das descrições em referência aos nossos propósitos. A gênese de tais propósitos, por sua vez, poderia ser descrita como “uma complexa teia de relações causais entre os organismos humanos e o resto do universo”[2]. Isso implicaria a substituição de relações de representação entre o homem e o mundo por relações causais entre este e aquele. Tal imersão total do modo humano de ser e fazer no interior das demais forças que dividem espaço com o homem, seria para Rorty uma descrição naturalizada da existência humana. Tal hipótese, uma vez assimilada a cultura, poderia favorecer a colaboração social por reduzir o poder persuasivo das pretensões essencialistas de posse de um ponto de vista para além do tempo, horizontalizando as posições no debate público.
O abandono de tais pretensões, todavia, longe de constituir um caminho que necessariamente convergiria para o consenso acerca do melhor meio de promover mais justiça social, é vista pelos usuários de velhos modos de falar como significativamente perigoso. O fim da demanda platônica pelo contato com a realidade externa ao indivíduo, bem como do próprio dualismo externo-interno, implicaria o abandono de uma concepção da escolha moral como de uma alternativa entre bem e mal. A conseqüência axiológica da opção por um vocabulário Darwiniano seria a concepção da escolha moral como uma escolha entre varias formas de gratificação pessoal ou coletiva.
“ A controvérsia entre fundacionalistas e anti-fundacionalistas em uma teoria do conhecimento é vista somente como um tipo de simples querela escolástica que pode ser deixada sem problemas aos professores de filosofia. Mas querelas sobre o caráter da escolha moral são vistas como mais importantes. Nós definimos nosso sentido do que nós somos através de semelhantes escolhas. então nós não queremos dizer que nossas escolas são entre bens alternativos ao invés de entre o bem e o mal”[3]28
Os críticos do suposto “relativismo” Rortyano - além de tentaram enquadrar suas idéias no quadro do antiplatonismo – O denunciam como pernicioso, pois, segundo estes, somente através da crença em uma “moral absoluta” ou em um objetivo “verdadeiro” a luta por liberdade e decência poderia tornar-se viável, pois do contrário as pessoas não se sentiriam motivadas a lutar contra o mal. Em sua replica a esse aspecto da critica as suas idéias Rorty responderá desenvolvendo uma argumentação que apontará para a contingência da relação entre os aspectos epistemológicos e axiológicos de uma dada filosofia e suas conclusões no campo das concepções políticas, ou acerca do que é melhor para a sociedade, citando os casos de Nietzsche e Dewey como exemplo. Os dois filósofos estariam de acordo acerca da “naturalização” do conhecimento e da escolha moral, mas em completo desacordo acerca de qual seria o melhor tipo de sociedade. Tal argumentação nos levaria a concluir que a opção por uma determinada descrição da realidade não garante a adesão a um determinado projeto político.
Para o pragmatismo Rortyano, a luta por justiça, moralidade e decência representa uma continuidade da luta por sobrevivência, e ao contrário de filosofias como a de Kant, a sua concepção naturalizada do ser humano pode perfeitamente abrir mão do recurso a uma faculdade chamada Razão para fundamentar a escolha moral. O destino do homem, sublinha Rorty, “não está inscrito nas estrelas” nem em uma racionalidade que lhe possa antever os caminhos a serem percorridos. O engenho humano em superar os problemas que encontra, a capacidade de cooperar sob certas circunstâncias seriam os candidatos Rortyanos a substituir o recurso a uma concepção de escolha moral baseada em princípios a-historicos. Trazendo por sua vez os críticos para seu próprio campo de batalha Rorty vai descrever a opção por tais princípios como abreviações de práticas do passado, releituras da doutrina cristão da igualdade em sua pretensão de ser mais universal que qualquer outra.
Universalidade e moral seriam sob o olhar Rortyano uma junção perigosa. A pretensão de envolver verdade e justiça em uma singular visão (pretensão essa que o próprio Rorty assume já ter possuído) poderia representar o sonho de ver as próprias idiossincrasias universalizadas e assumidas por outras pessoas. Algumas dessas Idiossincrasias poderiam ser positivas, outras inócuas, como a preferência por certas flores, mas também poderiam ser perniciosas, como certos “firmes princípios” que legitimam a homofobia e o duelo. Em um diálogo entre indivíduos com diferentes descrições do si - mesmo e diferentes concepções de justiça, para Rorty dever-se-ia recorrer apenas as vantagens de sua própria concepção do que é justo. Um diálogo que poderia ser tão infrutífero quanto aquele que recorre a “primeiros principios”(e que variam de uma teoria para outra), mas que admitiria a contingência da própria posição o que não significaria afirmar que qualquer escolha moral é tão boa quanto qualquer outra
“ Nossa visão moral, eu firmemente acredito, é muito melhor do que qualquer outra visão alternativa, entretanto existem pessoas que não seriamos capazes de convencer. Uma coisa seria dizer, que nossas escolhas não são melhores que as dos nazistas. E outra coisa dizer que nossas escolhas não são neutras, e que não existe um fundamento comum ao qual eu e um filósofo nazista possamos recorrer para falar sobre nossas diferenças”[4]
O assim chamado relativismo Rortyano teria como conseqüência política a renuncia a tentativa de recorrer a um padrão universal para determinar as bases do consenso público acerca do que é bom, e por conseguinte, a traçar o futuro humano com base em uma visão sibilina, a partir da qual o sucesso ou o insucesso da sociedade se tornasse uma questão de adequação ou não a um projeto. Em substituição a essas pretensões, cujo o poder retórico a história também tem demonstrado ser muito limitado, Rorty prefere optar pela descrição do percurso humano sobre a terra como um experimento cujo sucesso ou insucesso depende de múltiplos fatores, entre eles a capacidade de superar os próprios os problemas que vão surgindo, ou mesmo a sorte. A opção por uma filosofia atuante e deflacionada, opção de preferir inspirar uma audiência ao invés de converter os indivíduos a verdade, em oposição as pretensões de universalidade do platonismo, não tem uma solução simples. como o próprio Rorty reconhece, a opção por um dos vocabulários terá de saída um significado diferente para cada um dos partidos. Ao final, seriam os homens e mulheres do futuro que irão avaliar o resultado da aplicação de uma das duas formas de lidar com as questões que a existência nos coloca. Justiça e verdade para Richard Rorty são vistas sob a ótica da contingência. Esta como a convergência privada entre propósito e linguagem, e aquela como a convergência publica entre diversos interesses.
BibliografiaRorty, Richard Philosophy and Social Hope. Ed. Peguin Books 1 edição 1999.
[1] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag.18
[2] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag. 27
[3] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag.28
[4] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag. 15
A partir do século XIX a filosofia passou a incorporar a sua agenda a reflexão acerca das melhores maneiras de promover a instauração de justiça no interior da sociedade, concomitantemente tornou-se também muito comum justificar a própria posição filosófica contextualizando-a no interior de uma narrativa do processo histórico ao qual o pensamento, a sociedade e as instituições humanas estão submetidos. Todavia, apesar de muitos filósofos recorrerem a história para justificar suas teses, e suas concepções acerca do que é justo, nem todos eles admitiam a imersão destas mesmas teses e valores no caudaloso rio do tempo onde “tudo flui”. Segundo essa forma de narrativa denominada historicista a determinação dos fatos derivada do Devir histórico não abarcaria, em alguns casos, a “interpretação” destes mesmos fatos e, em outros, a própria noção do que é interpretar, ou seja, o que aí se chama de história seria uma sucessão de acontecimentos, cuja interpretação consistira em fornecer um “reflexo acurado” dos fatos, estando por sua vez tal modo de elaborar esse retrato submetido a algo maior e invariável o bastante para que se pudesse formular leis aplicáveis a diversas interpretações.
Essa inclinação, se por um lado advogava pelo espírito democrático e não-tutelar do conhecimento, movida possivelmente pelo anseio iluminista de igualdade e justiça, por outro lado negava-se a abrir mão de uma concepção estática e talvez mesmo aristocrática do que seria conhecer. Uma forma de explicar essa tendência seria afirmar que as mudanças sociais que surgiram na esteira do Iluminismo e que possibilitaram esse tipo de “consciência histórica”, na forma de relativização de certos vocabulários, preservaram ainda um resquício de certos hábitos comunicativos caracterizados, sobretudo, pela necessidade de recorrer a oposições cruciais entre substancia e acidente, necessário e contingente e em tentar unir em uma única síntese vida pública e vida privada. Ambos os aspectos, a utilização de oposições cruciais, e a tentativa de unir o público e o privado em uma única concepção filosófica, que Richard Rorty chama de Platonista, são os alvos da sua critica do fundamentalismo filosófico. Tal critica se desenvolve como uma tentativa de emancipar a filosofia, e a cultura como um todo, dos seus resquícios essencialistas, que ele irá considerar antidemocráticos, facilitando assim a cooperação social através da elaboração de vocabulários mais inclusivos, persuasivos e possibilitando a realização do que estaria em primeiro plano para o pensamento ocidental contemporâneo: a felicidade humana.
No livro “Philosophy And Social Hope” Richard Rorty fornece uma aguçada e instigante descrição da atividade filosófica para a qual tais “paradigmas” representam um apego a hábitos comunicativos herdados de nossos antepassados, hábitos esses, ultrapassados, inúteis e mesmo perigosos para os propósitos dos participantes de uma sociedade democrática. Esses hábitos, cultivados lado a lado com as esperanças por uma sociedade mais justa e mais inclusiva impediriam a realização de tais esperanças ao situar a verdade, no sentido da correspondência entre fato e linguagem, no primeiro plano da atividade filosófica. Isso limitaria a possibilidade de realizar noções como justiça, fraternidade e igualdade através de uma participação coletiva por solicitar aos individúos a adequação à supostas realidades atingidas através do que Hilary Putnam denomina “olhar de Deus”.
Tendo, segundo o relato auto-biográfico, estado envolvido durante os primeiros anos de sua atividade intelectual com a proposta Platônica de sustentar realidade e justiça em uma única visão Rorty, chegou a conclusão de que tal tentativa é um equívoco, e podemos citar dois dos principais motivos que o mesmo pontua para essa afirmação. Em primeiro lugar por causa das peculiaridades dos jogos lingüísticos que usamos para tentar oferecer justificativas não circulares do que é verdade, e sua absoluta imersão na luta humana pelo bem estar. Tornaria-se tal tentativa autodecepcionante, por estar toda escolha de vocabulário radicada na posição pessoal acerca do que é útil. Em segundo lugar devido à própria solidariedade, da qual depende qualquer tentativa de promover a justiça social e cujo sucesso não poderia depender tentativa de ligar as idiossincrasias pessoais dos indivíduos com um compromisso público com outros indivíduos. Para Rorty as descrições do que é “bom” que se pretendem validas para todos os indivíduos representam um projeto de ver-se como uma encarnação de algo maior que o si - mesmo (Deus, a Razão, o Movimento). A verdade, como uma tentativa de demonstrar o que é bom para todas as pessoas tratar-se-ia apenas da hipérbole de uma idiossincrasia pessoal, uma tentativa de ultrapassar a própria finitude, sendo portanto, contraproducente pois o que cada um vê como a coisa mais relevante a ser feita pode ser insignificante para outra pessoas.
A superação de tais hábitos, e a busca por um discurso ou descrição apta a promover justiça social, inscrever-se-ia, portanto, como um opção significativamente razoável por viabilizar a realização de anseios comuns tanto a filósofos empenhados na busca da verdade, no sentido platônico, quanto a políticos empenhados na promoção da justiça e indiferentes aos discursos grandiloqüentes dos porta vozes do que Rorty denomina de Platonismo. Caracterizar-se-ia assim a filosofia Rortyana como uma busca de promover a realização dos ideais iluministas de fraternidade e igualdade através do rompimento com o compromisso desse mesmo iluminismo com os dualismos da filosofia clássica substituindo estes por sua vez por uma concepção não representacionista e darwiniana do conhecimento. Para essa concepção, que de saída esquiva-se a tentativa platônica de conceber questões e propor problemas que não tenham nenhuma relação com a luta pelo bem estar, a esperança social seria o principal propósito de um discurso com pretensões de consenso público, em uma sociedade como a nossa, bem entendido.
A promoção de justiça para o platonismo não prescindira de uma concepção de ser humano, como ser capaz de colocar de lado seus interesses para ter no conhecimento a partir da distinção entre aparência e realidade um fim em si mesmo. Semelhante estratégia pretenderia recusar a distinção, cara às sociedades democráticas, entre vida privada e vida pública, impondo aos indivíduos compromissos que independem de sua sanção. Richard Rorty considera infeliz para sociedades como a nossa a tentativa de promover o bem estar social a partir de tal concepção de justiça radicada em uma descrição da essência humana que tem na descoberta da verdade seu principal thelos. Considerando a especificidade do momento histórico presente, bem como as criticas elencadas por autores como Hegel, Nietczshe e Dewey à concepção iluminista de racionalidade, esta sugestão infeliz do platonismo poderia, na opinião do filósofo americano, ser adequadamente substituída pela sugestão de uma suposta capacidade humana de cooperação em circunstancias favoráveis.
Essa substituição, que abre mão de ser considerada mais “fiel” a realidade que qualquer outra, permitiria colocar a esperança no lugar do conhecimento, evocando nos indivíduos um compromisso social que não estaria ancorado em uma diluição de sua vida privada na vida publica. Produziria-se o vinculo social através da participação livre evocada pela descrição contingente da solidariedade humana. Colocando a solidariedade humana na dependência da criação das condições adequadas para sua produção e fornecendo uma descrição alternativa à “essência humana” que induz os individuos a verem-se como co-autores dessa mesma solidariedade , o discurso filosófico estimularia a cooperação para realizar essas condições e de saída já favoreceria a própria solidariedade. Ao invés de colocar a solidariedade como o resultado da conversão das índoles a “verdadeira essência humana”, o relativismo de Rorty opta por colocar a produção do vinculo social com uma tarefa do seu discurso. O relativismo, apontado pelos críticos como a principal característica do pensamento Rortyano, teria apenas um papel instrumental no interior da filosofia do mesmo, servindo de acessório ao propósito que ele considera central ao seu filosofar: a promoção do bem estar comum.
O termo, relativista, segundo Rorty, seria aplicado a todos os filósofos que não admitem a definição clássica do conhecimento como adequação às coisas como são em si mesmas, sem levar sem consideração suas relações com outras coisas, em particular, as necessidades e interesses humanos. Todavia, Rorty faz questão de apontar que, embora utilize essa concepção acerca do que é conhecer, o termo relativista não poderia ser aplicado a pragmatistas como ele próprio se denomina. Para Rorty Filósofos como ele e Dewey prefeririam denominar-se em termos negativos tais como “anti-Platonistas” ou “anti-dualistas”. O motivo de tal alegação é óbvio: o relativismo como posição epistêmica admitiria a opção por alguma espécie de platonismo “invertido”, ou operaria no interior de quadros de referência que dão sentido a perguntas como : ”o que conhecemos é produzido por nós ou descoberto pela investigação?” A atribuição de algum tipo de relevância a questionamentos desse tipo implicaria, segundo Rorty, o abandono de uma concepção Darwiniana do conhecimento. Para tal concepção o pensamento humano, ou nos termos do próprio Rorty, nosso vocabulário, é desenvolvido no confronto com o mundo, na constante luta pela sobrevivência e pela felicidade e todas as questões formuladas tem algum tipo de relação com esse propósito, e podem servi-lo bem ou mal. O conhecimento pelo conhecimento em si - mesmo, a investigação que não tem na utilidade o seu propósito, é uma demanda considerada sem sentido, um mero jogo de palavras, uma vez que se opta por uma concepção Darwiniana do conhecimento.
As oposições binárias, que caracterizaram boa parte da noção clássica ou Platonista de racionalidade deveriam ser abandonadas por aqueles que se consideram pragmatistas, segundo Rorty. Os termos do debate entre Essencialistas que consideram indispensável uma concepção clássica de racionalidade e aqueles que acreditam que o termo racionalidade pode ser substituído por um espírito de colaboração e de argumentação horizontalizada, como por exemplo os pragmatistas, não poderia ser colocado a partir do ponto de vista dos primeiros. A opção por uma posição pragmática implicaria, portanto, na adoção de um outro vocabulário, um vocabulário que visasse “a inculcação de novos jeitos de falar, ao invés de esclarecedores argumentos que utilizam velhos modos de falar”[1]. Percebe-se que a critica Rortyana do platonismo esquiva-se por sua vez a categorização de relativista, categorização essa que permitiria aos assim chamados “fundacionalistas” refutarem o argumento Rortyano em seu próprio terreno.
A tradição denominada de relativista, na qual estão inseridos os filósofos europeus pós-nietzscheanos e os filósofos americanos pós-Darwinianos, teria como semelhança de família a critica as distinções Kantianas e Hegelianas entre sujeito e objeto, as mesmas distinções que tornam possível a formulação de questões como: “O que conhecemos é feito ou encontrado?”. Todavia, apesar dessa semelhança negativa ambas as tradições diferenciam-se em um ponto crucial no que tange ao valor atribuído a universalidade e prioridade do conhecimento filosófico em relação a outros exercícios da linguagem, esse ponto seria o que Rorty denomina de naturalização do conhecimento. Esta seria a principal diferença do modo americano e pragmático de conceber o conhecimento, um ponto que traz consigo uma rejeição da divisão entre a filosofia e outras áreas da cultura. Essa divisão, calcada na tentativa iluminista de fornecer algum tipo de vocabulário privilegiado frente a outros vocabulários possíveis, é perigosa quando o que está em questão é a busca de uma concepção de justiça segundo as expectativas de uma sociedade democrática. Rorty prefere ver todas as áreas da cultura como uma teia de esforços para tornar a vida melhor, uma descrição mais útil quando a produção de bem estar social é o que está questão.
A naturalização do conhecimento permitiria o rompimento com a figura cartesiana da mente, que pretende conceber como propósito da inquirição um contato com a realidade fora de si mesma. Para o discurso pragmático as idéias (ou linguagens) são ferramentas com as quais agimos sobre o mundo e que permitem a coordenação de nossas ações com outras pessoas para um fim em comum. Para efetuar tal naturalização, portanto, o principal recurso da argumentação pragmatista seria a relatividade do valor das descrições em referência aos nossos propósitos. A gênese de tais propósitos, por sua vez, poderia ser descrita como “uma complexa teia de relações causais entre os organismos humanos e o resto do universo”[2]. Isso implicaria a substituição de relações de representação entre o homem e o mundo por relações causais entre este e aquele. Tal imersão total do modo humano de ser e fazer no interior das demais forças que dividem espaço com o homem, seria para Rorty uma descrição naturalizada da existência humana. Tal hipótese, uma vez assimilada a cultura, poderia favorecer a colaboração social por reduzir o poder persuasivo das pretensões essencialistas de posse de um ponto de vista para além do tempo, horizontalizando as posições no debate público.
O abandono de tais pretensões, todavia, longe de constituir um caminho que necessariamente convergiria para o consenso acerca do melhor meio de promover mais justiça social, é vista pelos usuários de velhos modos de falar como significativamente perigoso. O fim da demanda platônica pelo contato com a realidade externa ao indivíduo, bem como do próprio dualismo externo-interno, implicaria o abandono de uma concepção da escolha moral como de uma alternativa entre bem e mal. A conseqüência axiológica da opção por um vocabulário Darwiniano seria a concepção da escolha moral como uma escolha entre varias formas de gratificação pessoal ou coletiva.
“ A controvérsia entre fundacionalistas e anti-fundacionalistas em uma teoria do conhecimento é vista somente como um tipo de simples querela escolástica que pode ser deixada sem problemas aos professores de filosofia. Mas querelas sobre o caráter da escolha moral são vistas como mais importantes. Nós definimos nosso sentido do que nós somos através de semelhantes escolhas. então nós não queremos dizer que nossas escolas são entre bens alternativos ao invés de entre o bem e o mal”[3]28
Os críticos do suposto “relativismo” Rortyano - além de tentaram enquadrar suas idéias no quadro do antiplatonismo – O denunciam como pernicioso, pois, segundo estes, somente através da crença em uma “moral absoluta” ou em um objetivo “verdadeiro” a luta por liberdade e decência poderia tornar-se viável, pois do contrário as pessoas não se sentiriam motivadas a lutar contra o mal. Em sua replica a esse aspecto da critica as suas idéias Rorty responderá desenvolvendo uma argumentação que apontará para a contingência da relação entre os aspectos epistemológicos e axiológicos de uma dada filosofia e suas conclusões no campo das concepções políticas, ou acerca do que é melhor para a sociedade, citando os casos de Nietzsche e Dewey como exemplo. Os dois filósofos estariam de acordo acerca da “naturalização” do conhecimento e da escolha moral, mas em completo desacordo acerca de qual seria o melhor tipo de sociedade. Tal argumentação nos levaria a concluir que a opção por uma determinada descrição da realidade não garante a adesão a um determinado projeto político.
Para o pragmatismo Rortyano, a luta por justiça, moralidade e decência representa uma continuidade da luta por sobrevivência, e ao contrário de filosofias como a de Kant, a sua concepção naturalizada do ser humano pode perfeitamente abrir mão do recurso a uma faculdade chamada Razão para fundamentar a escolha moral. O destino do homem, sublinha Rorty, “não está inscrito nas estrelas” nem em uma racionalidade que lhe possa antever os caminhos a serem percorridos. O engenho humano em superar os problemas que encontra, a capacidade de cooperar sob certas circunstâncias seriam os candidatos Rortyanos a substituir o recurso a uma concepção de escolha moral baseada em princípios a-historicos. Trazendo por sua vez os críticos para seu próprio campo de batalha Rorty vai descrever a opção por tais princípios como abreviações de práticas do passado, releituras da doutrina cristão da igualdade em sua pretensão de ser mais universal que qualquer outra.
Universalidade e moral seriam sob o olhar Rortyano uma junção perigosa. A pretensão de envolver verdade e justiça em uma singular visão (pretensão essa que o próprio Rorty assume já ter possuído) poderia representar o sonho de ver as próprias idiossincrasias universalizadas e assumidas por outras pessoas. Algumas dessas Idiossincrasias poderiam ser positivas, outras inócuas, como a preferência por certas flores, mas também poderiam ser perniciosas, como certos “firmes princípios” que legitimam a homofobia e o duelo. Em um diálogo entre indivíduos com diferentes descrições do si - mesmo e diferentes concepções de justiça, para Rorty dever-se-ia recorrer apenas as vantagens de sua própria concepção do que é justo. Um diálogo que poderia ser tão infrutífero quanto aquele que recorre a “primeiros principios”(e que variam de uma teoria para outra), mas que admitiria a contingência da própria posição o que não significaria afirmar que qualquer escolha moral é tão boa quanto qualquer outra
“ Nossa visão moral, eu firmemente acredito, é muito melhor do que qualquer outra visão alternativa, entretanto existem pessoas que não seriamos capazes de convencer. Uma coisa seria dizer, que nossas escolhas não são melhores que as dos nazistas. E outra coisa dizer que nossas escolhas não são neutras, e que não existe um fundamento comum ao qual eu e um filósofo nazista possamos recorrer para falar sobre nossas diferenças”[4]
O assim chamado relativismo Rortyano teria como conseqüência política a renuncia a tentativa de recorrer a um padrão universal para determinar as bases do consenso público acerca do que é bom, e por conseguinte, a traçar o futuro humano com base em uma visão sibilina, a partir da qual o sucesso ou o insucesso da sociedade se tornasse uma questão de adequação ou não a um projeto. Em substituição a essas pretensões, cujo o poder retórico a história também tem demonstrado ser muito limitado, Rorty prefere optar pela descrição do percurso humano sobre a terra como um experimento cujo sucesso ou insucesso depende de múltiplos fatores, entre eles a capacidade de superar os próprios os problemas que vão surgindo, ou mesmo a sorte. A opção por uma filosofia atuante e deflacionada, opção de preferir inspirar uma audiência ao invés de converter os indivíduos a verdade, em oposição as pretensões de universalidade do platonismo, não tem uma solução simples. como o próprio Rorty reconhece, a opção por um dos vocabulários terá de saída um significado diferente para cada um dos partidos. Ao final, seriam os homens e mulheres do futuro que irão avaliar o resultado da aplicação de uma das duas formas de lidar com as questões que a existência nos coloca. Justiça e verdade para Richard Rorty são vistas sob a ótica da contingência. Esta como a convergência privada entre propósito e linguagem, e aquela como a convergência publica entre diversos interesses.
BibliografiaRorty, Richard Philosophy and Social Hope. Ed. Peguin Books 1 edição 1999.
[1] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag.18
[2] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag. 27
[3] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag.28
[4] Rorty, Richard Philosophy and Social Hope pag. 15