sábado, 20 de fevereiro de 2010

Identidade e política nas ações afirmativas.

Mais uma vez, reforçando minha própria imprudência, vou colocar o dedo em mais uma temerosa ferida da consciência política brasileira. Venho conversando com amigos e parentes há algum tempo acerca da relação entre a nossa cultura e as práticas sociais e políticas nas quais ela interfere. Muito do que tenho escrito refere-se a essa relação. Não acho desejável uma interferência direta em alguns aspectos culturais, por saber que tal interferência poderia promover a crueldade em relação a alguns grupos humanos que tem suas respectivas culturas em alta conta. Todavia, como escritor e intelectual, fortemente influenciado pelo pragmatismo e pelo existencialismo europeu, não vejo como esquivar-me a tarefa de propor o debate acerca de certas formas de lidar como o mundo que nos são apresentadas por nossas expressões artísticas, familiares e religiosas. Vou citar um exemplo. Imaginem que por algum tipo de experimento cientifico, parecido com aqueles que costumamos ver nos longas metragens produzidos por Hollywood, um negro norte americano da década de 60 vem parar em uma favela do Brasil, na época, digamos de Cartola. Digamos que esse negro, que seria um militante da causa negra norte americana, um “Black Panther", ouve Cartola sentado com Carlos Cachaça e outros Sambistas no morro da mangueira tocando algo como "Alvorada". Quem já ouviu a letra desse famoso samba sabe que ele, de certa forma, oferece um retrato bem romântico da vida no morro. Algo parecido vem sendo feito por determinados movimentos artísticos que procuram resgatar a “identidade” das comunidades negras espalhadas pelo Brasil. O que diria esse ativista a Cartola acerca da relação entre esse Samba e as péssimas condições sócio econômicas dos negros das favelas? Creio que nada de muito elogioso.
A ênfase que os movimentos sociais brasileiros, inclusive o movimento negro, vem colocando na questão das identidades me parece inteiramente desacertada. Não creio que a defesa e a militância pró-identitária tenha produzido qualquer impacto relevante sobre a conjuntura política e cultural do brasil. A tentativa de produzir uma cultura onde todas as identidades sejam igualmente reverenciadas midiaticamente, ou uma cultura onde não exista qualquer resquício de uma determinada hegemonia, me parece um sonho utópico que se tornou consenso entre os militantes brasileiros encantados com trabalhos como o de Foucault. Mais acertadamente o movimento negro norte americano tem desenvolvido sua luta no sentido da inclusão econômica e intelectual do negro na sociedade, o que permitiu em um curto espaço de tempo um recuo considerável nas práticas racistas daquele pais. Em minha opinião, embora considere imensamente desejável uma cultura na qual todas as identidades sintam-se confortavelmente contempladas, não acredito que o esforço de grupos pró-identitários tenha qualquer relação com a erradicação do posturas preconceituosas como o racismo. O que deseja-se, eu creio, quando milita-se pelo fim do preconceito é que não exista mais nos espaços públicos práticas que submetam determinados indivíduos a situações vexatórias, humilhantes ou excludentes. Isso para mim tem muito pouco, ou nada, a ver com a difusão de uma dada consciência do que é ser membro de um grupo, povo ou étnia. Assim como não acho que a luta feminista tenha qualquer relação com uma propaganda acerca das “raízes” da feminilidade, ou que a luta contra a homofobia tenha qualquer relação com a elucidação das supostas “causas da homossexualidade”, não creio que a luta pró-identidade racial tenha qualquer relevância para o empoderamento dos negros. Para ampliar nosso sentido do que é "ser um brasileiro" ou do que é ser " um ser humano interessante, digno e capaz" precisamos apenas de uma massiva criminalização do preconceito acompanhada de produções artísticas que mostrem como todos nós somos parecidos, como partilhamos de sentimentos e qualidades em comum. Do ponto de vista da aquisição de poder penso que nossos objetivos seriam alcançados mais rapidamente se tornássemos os jovens negros cada vez mais cientes de que o único caminho para obter respeito social é a aquisição de, status através dos canais que a sociedade disponibiliza, e lutar vigorosamente para que esses canais se multipliquem cada vez mais através de ações afirmativas que estejam diretamente relacionadas a formação acadêmica, profissional e intelectual. Uma cultura coerente com essa busca pelo empoderamento negro, por sua vez, seria uma cultura que incentivaria a rejeição da romantização da pobreza (algo que, ademais, todo marxismo que assimilamos há tantas décadas ainda não conseguiu fazer)bem como da romantização do transgressor, da malandragem e da falta de responsabilidade para com o futuro dos filhos que um dia nossos filhos terão. Enquanto a luta por melhores condições sociais para as minorias não vier acompanhada de propagandas, discursos, produções artísticas e toda sorte de recursos culturais voltados para a produção de uma consciência prática acerca do tipo de destino que cada grupo deseja construir para si, de forma não-mítica, iremos patinar no gelo da autocomtemplação estética enquanto o futuro escorre por entre nosso dedos.

3 comentários:

Rafael Medeiros disse...

No seu ver, as cotas para negros praticadas no Brasil são medidas acertadas?

Hilton Leal disse...

Penso que sim, esse é o caminho adotado há muito tempo pelo governo Norte Americano. As cotas para Afro descendentes representam uma política de reparação que nada tem a ver com questões de identidade, cultura, ou "raizes". Acho que outras politicas Pró-identidade é que estão erradas.

Rafael Medeiros disse...

Realmente, as cotas foram um surto de progresso no nosso Brasil medievalóide.